domingo, 30 de dezembro de 2007

Auto – Indulgência (Uma mensagem de Solstício de Verão)

Muitas religiões condenam o excesso, o exagero, o desperdício. Especialmente quando o exagero se trata de qualquer prazer. Auto-indulgência significa não apenas realizar os próprios desejos, mas fazê-lo como se isso fôsse a única coisa, tanto e tantas vezes e de tantas formas diferentes que o prazer chega a se tornar em dor, lacera a carne e traz o sangue à tona, e adentra o corpo pelo sangue, impregnando-o com sua essência. É uma das virtudes pagãs que desejo louvar agora, sendo que estarei escrevendo sobre outros conceitos que me encantam mais adiante. Como provavelmente esta é a última postagem do ano de 2007, desejo fazer dela também uma mensagem de ano-novo para todos aqueles que lêem estas páginas malditas.

Então, como eu ía dizendo... Há um complô antigo para que as pessoas não se dêem o luxo da luxúria. Toda sorte de morais ocidentais nasceram de um desejo de anular a fome e a sede que temos pelas coisas que amamos e que nos dão prazer. Ser faminto e sedento como um cão é sinal de inferioridade para muitos, mas não para mim. Pobres daqueles que querem fazer altares de sua miserabilidade existencial, que olham de cima para nós que somos seres que rastejam em busca de qualquer migalha de prazer, como aristocráticas estátuas egípcias. Ninguém deve se envergonhar por não ser mais que um cão. Hoje escrevo estas palavras após a festa ritualística que reuniu em casa todos os belos pagãos que consegui convocar, e que me fez mais uma vez saber que a mais excelente arte é feita pelos famintos, que apenas os famintos realizam bom gosto. Nego a virtude, nego a evolução, quero ser apenas a serpente que sou, cheio de desejos, cheio de manias, cheio e não vazio. Adeus à metafísica: quero me tornar cada vez mais físico! Nada de verdades invisíveis e impalpáveis que se busca no além. Quero apenas mergulhar com todas as minhas forças em tudo que seja palpável como eu.

A auto-indulgência é o que eu desejo para todos os meus verdadeiros amigos (amigos não, amantes) neste próximo ano. Este mundo é o mundo perfeito para quem não é idiota e deseja aproveitar a vida. Tantas belezas, tantas delícias, todas postas à mesa para quem sabe cultivá-las, colhê-las e comê-las. Às vezes eu penso que o mundo foi criado só para mim... Tão perfeitas são as suas obras, que se encaixam tão perfeitamente a mim, a meu corpo, a minha mente. E eu, que sei ser auto indulgente, como cresce em mim a capacidade de aproveitá-las, em suma, como é grande em mim a força de amar. Espero que possamos todos ser consumidos por estas forças, enquanto escolhemos uma parcela generosa da vida para devorar com avidez. Se timidez, sem frescuras, sem regras de etiqueta. Amor e fome rimam desde eternidades...

domingo, 9 de dezembro de 2007

Urban Trad Manifest

O filósofo e historiador Oswald Spengler descreve com belíssima nitidez o sentido de nossa civilização, e retrata a metrópole como um formigueiro demoníaco onde tudo remete ao passado, onde a pedra repleta de alma das catedrais góticas se expandiu ad infinitum, moldando a paisagem com o sublime simbolismo da morte. As cidades onde vivemos são gigantescos museus funerários, toda sua beleza opõe-se à vida prendendo-a, sufocando-a, limitando sua expressão para o caminho do puro espírito. As cidades são vitórias da matemática e da geometria sobre a vida, e suas avenidas infinitas cercadas de arranha-céus são os caminhos sagrados dos faraós egípcios. O homem que vive ali, se quiser se manter imune a essa mortífera beleza, deve tornar-se no meio da multidão o mais solitário dos homens.

O que ainda existe de cósmico no homem das cidades pulsa e se contorce nesses matemáticos desertos de pedra, aço e vidro. É a lembrança da natureza, uma vez que o homem não deixou de ser natural. São seus instintos rítmicos, cíclicos. Em seu corpo, esses instintos conflitam incessantemente com seus scripts urbanos. O camponês ainda está muito perto, na geração dos avôs. E é o passado, não o futuro, que mais nos encanta. Apesar de seu pretenso futurismo, a cidade clama por passado e devora com luxúria qualquer refeição de antiguidade que se lhe proponha. Não é um desejo pelo retrocesso à antiguidade em si, uma vez que exposto aos ritmos cósmicos do campo, os seres da cidade enlouquecem. É apenas algo que lembre a vida, não necessariamente a vida em si. Mas a cidade, a metrópole, essa destruidora massa informe, se derrete diante de uma dose mínima de beleza e de vida.

Eu sei muito bem do que estou falando. Venho tocando a música que em nossos dias é denominada de céltica há dez anos para os públicos da cidade. A música dos camponeses da europa, de séculos passados, música de nossos ancestrais. Posso dizer que depois de centenas de vezes em que apresentei esses repertórios, não me lembro de uma unica vez em que o público não tenha se sentido hipnotizado, transportado, independente da qualidade da performance. Apesar de arcaica, essa música soa mais contemporânea do que nunca em nossos círculos urbanos, uma vez que nossos contemporâneos estão obcecados por se libertarem e essa música oferece uma paisagem que propicia a libertação dos sentidos. Além disso, ela traz impregnada em si uma humanidade mais forte, mais saudavel, talvez não mais livre do que nós, mas certamente mais nômade.

Esse rebento anacrônico da metrópole, o ser tradicional contemporâneo urbano, é uma das poucas loucuras saudáveis que podemos encontrar no universo sonoro de nossos dias. Ele é um fruto da cidade grande, sem dúvida. E um fruto de sua época, a época dos “fins dos dias”, o outono de sua civilização. Ele anuncia novamente o camponês, o homem eterno, independente de qualquer cultura, cujos ritmos e deuses são os mesmos desde sempre. Em seu nomadismo cerebral, o bardo contemporâneo saúda o camponês, traz seus ritmos para sua vida. Submerge neles para vivificar-se.

O ritmo cósmico é o ritmo das plantas, o ritmo dos ciclos da natureza. Esse ritmo é que anima a música celta, de dentro, seja ela camponesa ou urbana, tradicional ou contemporânea.

E as pessoas dançam ao ritmo!

E é isso que nosso grupo deseja trazer. A música celta é como uma vasta floresta. É possível respirar campos já extintos através dela. Seus repertórios infinitos são como a multidão de seres que povoam as matas. Cada canção e cada dança é como um majestoso ser individual, tornando-se eterno através da transformação, enquanto mantém-se basicamente o mesmo. E como ser mágico, ser dotado de muita alma e antiguidade, cada canção transforma o espaço invisível, o espaço entre as pessoas, uma vez que o espaço urbano impõe-se e não pode ser transformado. Mas o ser e sua relação com o tempo, isso pode ser transformado, isso é uma questão de ritmo e de tom. Quão infinito pode ser o momento inspirado por uma canção! Entra-se na própria vida das pessoas, em seus organismos, injetando a seiva da vida e de um violão que chora...

sábado, 1 de dezembro de 2007

O Nascimento dos Nossos Vícios

Texto extraído do Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant.

Rémy de Gourmont traduziu um texto surpreendente do séc. V a esse respeito – o Hamartigensia, ou gênese do pecado – de Aurelius Prudentius Clemens de Saragoça. Nossos vícios, escreve Prudentius, são nossos filhos, mas ao lhes darmos vida eles nos dão a morte, como o parto da víbora. Ela não dá à luz por vias naturais e não concebe pelo coito comum que distende o utero; mas assim que sente a excitação sexual, a obscena fêmea provoca o macho, que ela quer sugar com a boca bem aberta; o macho introduz a cabeça de língua tripla na garganta de sua companheira e, todo em fogo, dardeja-lje seus beijos, ejaculando por esse coito bucal o veneno da geração. Ferida pela violência da volúpia, a fêmea fecundada rompe o pacto de amor, dilacera com os dentes o pescoço do macho e, enquanto este morre, engole o esperma infundido em sua saliva. O sêmen assim aprisionado custará à mãe a sua vida: quando tornarem-se adultos, estreitos corpúsculos, começarão a arrastar-se em sua morna caverna, a sacodir o utero com suas vibrações... Como não há saída para o parto, o ventre da mãe é dilacerado pelo esforço dos fetos em direção à luz, e os intestinos rasgados lhes abrem a porta... Os pequenos repteis rastejam em torno do cadáver natal, lambem-no – uma geração órfã ao nascer... Como nossos partos mentais...

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Seres da Floresta Ficam Doentes? (Registro)

Certas experiências são tão extremas que fica difícil pensar sobre elas, que dizer de registrá-las em palavras? Tal foi a sensação deixada pela Irish Fest, onde tocamos com as bandas Merrow e Dundalk. Às vezes penso que é sorte mesmo sair vivo dessas empreitadas...

Toda a história começou com uma negociação ridícula com o patético organizador do festival que (graças aos deuses) nem estava lá no dia. Estava bêbado demais para ir. Estávamos a ponto de ser explorados por ele quando me uni às outras bandas para dar um basta: amor à arte é o caralho, isto aqui é nosso trabalho! Sempre aparecem pessoas querendo que as bandas paguem para tocar. Sempre dizem que será bom para divulgar o trabalho.

Às favas com essa merda! Enfim, no final conseguimos o que queríamos à força.

Eu realmente não me lembro de ter feito esse show... Ou melhor, me lembro de flashes. A energia estava incontrolável. Há um nome para isso, um nome que meus antepassados tremem ao ouvir: possessão. Sim, eu me lembro de ter estado lá, eu me lembro de ter tocado os sets... No entanto o que mais me lembro é de o público se parecer com labaredas dançando na nossa frente, serpentes de fogo. O som de seus pés batendo no chão é mais real nas minhas memórias do que o som da banda. De maneira alguma parecia que estávamos neste mundo. As canções não pareciam canções, pareciam encantamentos. Um amigo disse que tocamos como assassinos profissionais... Esse era exatamente o sentimento que preenchia aquele palco. Sexo e violência, natureza e arte! O espaço entre as canções era denso como manteiga. Em nenhum outro show eu suei tanto, nem senti fome, nem consegui dormir depois.

Esse show foi como uma boa foda!

Depois, eu passei uma semana inteira com a sensação de febre e não queria nem pensar sobre o que tinha acontecido. Houve uma tal alteração de estado de consciência ali que na sexta-feira seguinte (o show foi no sábado) é que senti o vazio de quando voltei ao normal, e mergulhei em uma catatonia depressiva que durou dois dias e me deixou jogado na cama e nas cadeiras de casa.

Estranha doença esta Musa... Mas eu não tenho outros desejos, e se for morrer disso morrerei feliz.

Enquanto isso, o que não me mata me torna mais estranho...

Like a Black Cat

O prazer de escrever é o prazer de tocar a infinitude com mãos bem reais. Tocá-la, provocá-la, despertá-la. É o prazer daqueles que foram feitos para amar os deuses sexualmente.

Bem poucos foram tocados da forma que eu fuitocado em sonhos. Que deusas e que deuses se entregaram a mim em sonhos! Escrever, sentir a caneta deslisando pelo papel famigeradamente, me devolve o prazer impossível das carícias do infinito. É como se tudo se tornasse em uma longa e deliciosa foda – núvens rolando pelo céu umas sobre as outras, produzindo trovões e relâmpagos, entregues ao vento. Sinto-as dentro de meu rosto, dentro de meu peito, minhas mãos e meus braços passam a imitar seus movimentos. Me estico e meu corpo é desfeito, minha mente segue apenas os ritmos de fluxo e refluxo das marés.

Demoro a me entregar ao sono. Escrevo algo sensual, mas o que é sensual mesmo é escrever. As letras secom sobre o papel como beijos, como lambidas, como se os atos de amor ficassem tatuados na pele amante, receptiva, do eterno, do infinito, do vazio que implora por ser preenchido. O movimento das letras cria a forma dos meus desejos. Seu cheiro azul me prova que a divindade goza entre os riscos, que ela se enleva e se entrega aos ataques da pena.

Que importam todos os sentidos que as palavras têm? A sensualidade da caligrafia apaga todos os sentidos das palavras enquanto me deixo levar quase de olhos fechados por entre os murmúrios que rompem o silêncio da noite. As sílabas colam-se ao papel quase como se tivessem sido derramadas de minha boca. Algumas palavras borram como se fôssem beijos demasiado grandes cujo suco se derrama. Olho para elas com devassidão: minha boca está manchada de tinta azul, estive beijando o céu. O azul do céu se derramou em meu queixo e em meu pescoço, e a luz do sol faminta devora esse azul de todas as formas e com todos os sentidos.

Às vezes sopro as palavras para secá-las mais rápido e então a Natureza grita.

Este vício muitas vezes me leva à exaustão. Sou escravo de meus desejos, como o sou deste vício, desta Musa. Ela não me dá descanso, especialmente quando estou cansado. Ela, a Selvagem Rosa Azul, me arrasta e me esfrega. Ela é uma serpente sobre a pele branca da amante, que se corrompe em listras para receber minhas carícias da maneira que ela quer, da maneira que ela gosta.

Rastejo e rastejo com ela noite após noite, dia após dia. Meu sangue se tornou em tinta, e aqui, onde as aves que trazem os sonhos dormem e despertam, toda a minha perversidade é aceita. Não há desejo secreto ou proibido aqui. Há letras que lutam por seu espaço, mas elas são apenas como pernas de amantes desajeitadas em uma cama cheia de cobertores, que se batem.

Os sonhos me chamam. Eles olham por trás destas letras diretamente em meus olhos, me convidam a deitar as carícias e me perder. Algo nestas letras os atrai, pois vêm como cardumes inteiros para minha rede.

Quando eu me deito, minhas letras dançam ao redor de meu corpo. Quando acordo, os sonhos me provocam e a todo tempo, ó Amante, eu estou pronto!

Weakling (Registro)

Durante o segundo show do SESC Vila Mariana, senti algo que talvez todo artista sinta, mas que jamais confessa, e que ninguém no público é capaz de perceber. Uma espécie de fraqueza, de embaraço, que se apossou de mim no momento em que percebi que desta vez o duende não viria. Me senti nú, como se todas as minhas fraquezas, todos os meus defeitos, tudo aquilo que é ridículo em mim estivesse exposto para todos os que pudessem ou quisessem ver. Eu podia ver o meu esqueleto se apresentando. Senti vergonha e tive vontade de fugir.

No entanto, sim, foi incrível lidar com isso. Operar através da minha sombra, mantê-la até o fim do show, amá-la mesmo, ainda que através da admiração de outros. Conquistei algo definitivamente, ali. No final das canções, este ser que se repudia e se odeia recebeu honrarias iguais ao ser radiante que se ama e se sente orgulhoso de si. Ambos se fundiram naquele momento, somando duas belezas distintas.

No final, como importa pouco o que sentimos... Há além desse mesquinho sentir humano um mundo de poder que o atravessa. Poder, além de sentir. Isso é para mim caríssimo, pois eu mesmo sou nada mais que um bote (corragh) sacodido por todas as tempestades, mas o poder que o conduz faz com que ele sempre retorne inteiro para casa. A intenção desse poder constrói e destrói mundos, sim, é um verdadeiro deus que guia este bote com os olhos fixos em suas estrelas, mesmo quando elas estão escondidas pelas tempestades.

Só acreditaria em um deus que soubesse navegar...

Kandirê

Todo sentimento que se esvai deixa atrás de si um forte rastro de vazio. É difícil acostumar-se a isso. Não há palavras para expressar o que sinto toda vez que algo acaba, um show, uma festa, mesmo um ensaio... Volto à minha vida cotidiana com dificuldade e com um aperto de vazio no coração. Não é que a minha vida seja ruim. Ela é maravilhosa, mas nada nunca dura o tempo suficiente para mim, as experiências sempre me deixam insatisfeito porque terminam muito antes do que eu gostaria. Às vezes penso: as coisas deveriam ser como as antigas orgias e festivais – durar dias, meses até. Tudo em nosso mundo é rápido demais, e mal temos tempo de sentir o que se passou. Preenchemos com significados o enorme espaço vazio entre as coisas, entre os momentos em que vivemos como deuses. Sofremos um excesso de interiorização, mas também não sofrem os que vivem o oposto disto? Yeats dizia que a vida de um camponês é tão cheia de acontecimentos que é demais até mesmo para um grande coração suportar.

No entanto, continuo desejando viver a vida de um deus. Mesmo sendo prisioneiro na cidade, mesmo vivendo em uma época que não é exatamente de ouro, algo dentro de mim ainda insiste em se rebelar contra a realidade. Como meus ancestrais, minha alma guarani insiste em ver este mundo como um inferno que só poderei atravessar dançando e cantando. Carrego comigo este desejo represado para todos os grandes momentos da minha vida. Carrego-o para o palco, para a cama, para cada conversa e cada encontro de olhares, e espero carregá-lo um dia também para o caixão. Não quero desejar menos, ainda que o desejo me faça sofrer.

Sim, nos momentos que nos extraviamos de nossas mesquinhas vidas cotidianas, nós somos deuses. Talvez esses momentos ainda sejam poucos, e talvez um dia seu poder transborde para todos os gestos.

As the Morrigan Sings (registro)

Obras de arte perfeitas devem ser feitas como um sacrifício. Há sangue nas obras daqueles marcados pela Musa. Sangue do silêncio, que é música. Sangue do vazio, que são cores, corpos, visões. Minha vida inteira se diferencia muito pouco daqueles momentos em que estou no palco tocando e cantando. Este registro será escrito na linguagem do sigilo absoluto. Para afastar as bestas...

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O Livro da Fome

Dizem os cristãos que Deus é amor, que o amor provém de Deus. Mesmo se eu fôsse cristão eu não pensaria assim. O amor provém do Diabo. Deus é tudo aquilo que nos afasta do amor, tudo aquilo que nos dá razão pura e simples, que nos liberta do tormento da existência no mundo dos sentimentos.

É fácil entender como os cristãos cometeram esse erro. Eles inventaram um conceito para o amor, um conceito para substituir o amor. Ágape, o amor de Deus, o amor sem carne, o amor sem interesse. Algo que não existe, mas que a ilusão é bem capaz de criar, e algo benigno para os que são capazes de acreditar em ilusões. Infelizmente, se eu acreditasse no cristianismo, eu pertenceria ao Diabo. Não por escolha. Mas porque não tenho imunidade contra o amor. Ele vem e faz de mim o que bem entende, me mói, me destrói, me separa de mim mesmo e de tudo que é saudável. Se eu pudesse escolher, viveria para sempre sem amor... Nunca o teria sentido, nunca o teria tido, nunca teria pertencido a ele...

Dizem os pagãos que não há amor sem morte, não há prazer sem sacrifício. A vida é uma dura montanha russa de prazer e de dor, e temos que afirmar a vida. Sim, é muito mais fácil ser cristão, muito mais confortável para a consciência. Mas eu não sou cristão. Não acredito nem em Deus nem no Diabo, a não ser como metáforas para alguma imprecisa poesia antiga. Já a vida... a dor, o prazer, a fome... quem está livre destas coisas?

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

As Andanças da Mortalha (excerto VI)

O Amor está vivo! Está vivo nas preces mais estranhas, nos encontros mais inusitados!

O Amor me leva a ter o melhor de todas as pessoas! De todos os frutos da Terra!

O Amor guia meus passos, faz de meus caminhos runas iniciáticas, que compreendo quando se definem, no último traço!

O Amor desenha meu corpo na vida e desenha a vida em meu corpo!

O Amor não me deixa desviar-me do caminho, e me impede de ter uma vida normal, empurrando-me para os cumes com uma força invencível!

O Amor me tira o sono e me mata a fome, faz meu corpo sangrar em sonhos e desviar seu olhar para alhures!

O Amor destila-se em mim como um veneno ofídico, quintessência das maiores dores e dos maiores prazeres!

O Amor ferve em minhas veias e ilumina meu sangue, provocando visões, mantendo-me vigilante além da vigília!

O Amor e a minha Morte caminham lado a lado, se desafiando mútuamente! Desse jogo amoroso surge a lava incandescente de minha vida!

O Amor é a febre original onde nossos corpos estavam na passagem entre os mundos!

O Amor nunca me abandona, e quando desejo outro corpo é o Amor que deseja em mim!

O Amor me faz querer todos os corpos que são possíveis num só corpo!

O Amor me faz penetrar em outro corpo como a água, atravessá-lo por inteiro, estar no corpo-além-do-corpo!

O Amor faz do meu corpo uma ferida da luz, eternamente aberta, eternamente sangrando!

O Amor me faz buscar meu corpo nas estrelas!

O Amor me nutre com a maior de todas as forças, tornando todo o meu ser forte, não só meu corpo!

O Amor me segue e em raízes profundas e ocultas me alcança!

O Amor me transforma e me preenche com seus dias e noites!

O Amor me reconduz a uma vida benigna, um caminho digno que termina numa Boa Morte!

O Amor me ama além da Morte!

O Amor me chama para fundir-me a seus sonhos, seus gestos de poder, suas miríades de infinitas existências, e eu não desejo nada mais que isso!

O Amor me puxa para si em danças que se renovam a cada dia e eu me atrevo a dançar com ele!

O Amor interfere nos meus planos e eu dou a ele cada vez mais autoridade sobre mim!

O Amor toca em mim sua canção de febre e meus braços ardem, meus tornozelos tremem e minhas mãos dançam na frenética dança do Devorador!

O Amor grita para mim de dentro de outro ser e me pede para hipnotizá-lo!

O Amor segue seu curso inexorável e eu me ponho a aprender tudo com ele!

O Amor me despe das lápides do mundo e eu sigo com ele para o Corpo Infinito!

O Amor me sonha co seus cílios dourados e prateados e negros, e a minha vida encontra infinitos pontos onde o tempo não vai!

O Amor me vive com seu magnético devir e eu vejo as cores e as formas que me formam me encontrarem no caminho, na Rosa dos Esconderijos!

O Amor me permite ser sempre livre, sempre belo e sempre saber querer!

O Amor me arma para as batalhas, me torna um conquistador de reinos, um avatar de sonhos imemoriais, um ritmo excepcionalmente forte que conduz outros ritmos pelo mar dos ruídos!

O Amor me dimensiona de tal maneira que sinto-me a trocar de vida a cada instante!

O Amor me reveste da sua máscara, que reverbera nos arcanos profundos da trovoada!

O Amor me sussurra palavras ouvidas por seres perfeitos onde o mundo tem seu covil mais íntimo!

O Amor se manifesta em mim como imagem e semelhança de mim mesmo, de meu corpo, de meus sonhos, de minha mais exuberante satisfação!

O Amor entrega-se a mim como um papagaio kazar se entrega a recitações do passado que ninguém compreende mais!

O Amor me enlouquece, e no seu murmúrio o real e o irreal entram em uníssono perfeito!

Lena Marca e Assinala sua Amante

“Por que você quer sair e mudar o mundo? Meu amor não é o bastante para você?” disse ela das falas balbuciantes com o lábio superior de chocolate e o lábio inferior de morango. “Se você soubesse das coisas que quero fazer com você se esqueceria do mundo e de todos os seus dervixes se contorcendo e da fome. E se você se abandonasse a mim por só um momento para que eu pudesse te remodelar com meus dedos, eu construiria asas em cada pequeno território de tua pele. Eu conheço cada ramificação e sei fazer florescer e frutificar. Dá-me tua pele e farei para ti um pomar. Eu conheço correntezas ocultas que vão dos mamilos ao coração, do coração à garganta e que encherão os teus olhos de pétalas. Conheço os aromas corretos para pintar teus lábios em cada lua, em cada dia da semana. Eu quero pintar teu corpo inteiro como um brinquedo dos deuses. Quero curar teus desejos insatisfeitos, quero penetrar em teu corpo com a luz do meu olhar. Quero te transformar em todas as deusas enquanto me transformo em todos os deuses. O vento irá uivar e as pásirão cavar e escavar cada partícula de mente escondida em tua pele, sob tua pele. O pincel da mais doce carícia que dança acompanhando as estrelas de teus doces ossinhos trará a canção mística de tua criança, que se lembra dos jeitos de sorrir na chuva. Pense na tinta de inúmeras flores esquisitas secando na tua pele, do toque doce e suave dos unguentos azuis-aquáticos sobre tuas serpentes, mel sobre tuas pálpebras, com pétalas lilases de asas-de-fada, negro jenipapo em teu rosto, e o abraço fino e liso que nos conduz ao vale onde as sombras cantam doces canções. Pense no pincel de meus dedos te devolvendo todos os ventos, as brisas, a doce awen d caldeirão, nos envolvendo em um dia de segredos sem culpa. Brincadeiras infantis de riso e delicada malícia. Quero te dar o própolis que é feito com o mel das abelhas virgens.”

Talaith

Cidades reluzentes sob o espectro do Sol. Uma colcha de linhas retas que com sua violência de agulhas costura o corpo da terra, que a terra exibe como uma roupa tatuada. Dentro das linhas cada partícula é uma possível rota de fuga. E o sangue esmagado e a gaivota.

Estas linhas de escrita que se fazem no espaço hermético-erótico entre a minha pequena dor e o insuportável e aterrador êxtase cósmico de amor e morte servem apenas para propagar-me com segurança no tempo público. São diademas líricos que coroam deusas evanescentes, corpos dispersos pela ganância cronológica, e isso me pede uma reatualização de meu espaço íntimo, exposto pela putrefação social ao ar impuro.

Um espaço íntimo impulsionado por uma imagem intensa. Preciso de um incêndio lento agora. Eternizar o momento em que a mariposa se propaga em seu novo mundo Tudo muito devagar... e talvez a cidade seja capaz de ver que por amor invadimos as casas dos que não têm casas e com amor somos recebidos.

Cidades nojentas e empoeiradas onde rastejamos, cheios de luz. Um exército de almas. Larvas. Talvez a cidade seja o sacrifício necessário para que o novo ser nasça, para que venham os novos sons, os novos sopros. Como forças maiores, que a superfície que resiste por algum tempo sempre breve o suficiente, deixa eclodir.

Diademas reluzentes que rasgam-nos a pele.

Croio

Eu não sou uma coisa que flutua. Rastejo muito abaixo destes pensamentos que são como correnteza fria que me acalma. Conheço as pedras cheias de limo, a barriga interior. A eletricidade, o sonho do fundo do rio – docemente passeia por mim um desejo de sucumbir tão confortável e leve, todos os anjos das águas cantando canções serenas, me levando em uma carroça de escamas de ouro, longe das lágrimas, debaixo dum croio...

Definitivamente não desejo ser um animal que voa. Adoro o peso, o retorno ao chão escuro, o encontro de caminhos trançados como runas, enquanto passeio, tonto, por toda esta paixão, todo esse desespero.

Não me desespero por medo, mas por prazer. Poesia que alimenta o veneno.

Desejo este desespero, talvez sem ele eu não conseguiria viver. Talvez sem ele eu seria como essas pessoas que sempre atribuem toda culpa a si mesmas, todos os pesos do mundo sobre seus próprios ombros para terem o orgulho dos gestos martirizados dos ícones. Não desejo a linguagem comum, o inesperado é que me fascina. O que não deveria estar ali é que me convence de sua grandeza. O Nada-Casual.

Por isso amo este mundo e não todos os paraísos etéreos onde deveríamos estar tocando bombarda com os anjos. É como estar sempre doente a vida, sempre com alguma febre, e se eu tropeço no destino como um bêbado o faria, é provável que eu deva ser um bêbado.

Embriagado da força das pedras.

Uma Morte Generosa

Enquanto me sento e ouço os mistérios sem significado algum para mim em um templo construído por mãos humanas onde só entro porque minha Dama das Águas resplandesce sobre o altar em uma imagem carnal, o mundo lá fora prossegue com seus frutos da estação como um tarado. Há fogo por todos os lados e as labaredas consomem todos os traços de meu antigo ser.

Eu não amo a humanidade, amo indivíduos. Não há nada que eu despreze mais que um coro de vozes que diz: “ROGAI POR NÓS” e no entanto aqui estou eu. As pessoas são corpos que o amor atravessa e no delírio obscuro da igreja as intensidades carnais se tornam mais fortes. Os sacrifícios das vozes cobrem o silêncio de rendas brancas, debaixo delas porém, o sangue ainda é vermelho.

O sangue ainda é vermelho nas veias. Se os pensamentos da mente fazem uma mortalha evanescente ao redor do corpo, assustando o ente que vive na torre, o próprio corpo é que responde com seu aterrorizante amor, ameaçando a própria morte de que ele é feito. Esse pensamento depende de veios. Sangue arterial e sangue venal. Inspiração e expiração. Não pares de opostos. Sinônimos sincrônicos e simétricos. Transfiguração e expiação.

Às vezes da ponta da caneta brota um excitante instrumento de percussão. E as letras que se inscrevem cada qual tem seu ritmo único. Penso que quem tem seu ritmo tem tudo. Uma larga parcela de si mesmo dividida e uma morte generosa.

A Luz é generosa!

3:37

Como poderia não vigiar para ouvir o sabiá da madrugada? Sua árvore é um extraordinário local de orações! Me atrai e esculpe em mim um coração monumental em pedra sólida, cheio de propósito, cheio de ninguém.

O silêncio com ele se torna óbvio. Tatua em meu peito um síbolo dos céus.

Não posso viver sem o sabiá da madrugada. Quando ele não está presente eu o invento em mim. Ele é água que solta minhas amarras. Eu afundo e serpenteio, como um cometa que fecunda a poeira das estrelas. Eu fui a serpente engolida pelo tubarão, que se tornou constelação no céu de sua barriga. Eu sou o cântico do sabiá da madrugada.

Fome

Uma luz divina invade meu quarto, vinda de um céu de prata de toneladas de gelo suspensas pelos ares. Eu tenho fome de luzes. Lembro-me de raios que vi há muitos anos, de como me tocaram, de como eu cri neles como em ninguém mais. Tempestades, e eu sempre atrás da janela, um par de olhos estarrecidos, apaixonados, cúmplices.

O mundo sempre empresta as cores dos meus sonhos. Sou o meteorologista perfeito, aquele que se comunica com os espíritos da chuva e do vento. Hoje o mundo cobre-se no manto branco do meu devir corujinha-sapo. Há um calor polar, um lançar-de-sonda-para-as-profundezas-do-ser. Nada busco. Apenas aprecio as paisagens. Certezas são mais do que desejo. Estou aprendendo a viver na segurança da imprevisibilidade.

Tenho fome de amor. A voz dela caminha por dentro de meu ser, suas palavras cheias de calor, que alimentam cada vaso sanguíneo, cada artéria, cada veia. Meus músculos, carregados de sua sutileza, só desejam os menores gestos. Os ventos dançam entre nós. Ouço o murmúrio de seu silêncio nas danças dos ventos. Sou dela o reflexo, o idêntico, o ritmo de menino, mas ela diz o contrário, que ela é meu reflexo. Ela é perfeita. O reflexo se confunde com a imagem, ambos voltam a ser um só.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

A Dança do Sol (Registro)

Sábado à noite tocamos com o Dundalk no St. John’s. Quase derrubamos o pequeno Pub, que cada vez mais fica pequeno demais para nós. Vou tentar reconstituir neste registro o que foi esse dia, com o que me resta de energia...

Logo que o dia começou, fiz o meu ritual de sempre. Fui regar e rezar minhas plantas, e tirar uma carta de um baralho chamado Cartas do Caminho Sagrado, que contém os aspectos ritualísticos da tradição dos índios norte-americanos. A carta que eu tirei fala sobre sacrifício, um tema que cada dia mais toma novos e surpreendentes significados para mim. Pus-me a pensar... Sacrifício, o ato de tornar sagrado. Não é o que é ruim e pestilento em mim que é sacrificado, pois disso resultaria em dar um valor demasiado à imundície dessas condições. Ao contrário, eu é que sou sacrificado, tornado sagrado, pelo ato de deixar para trás, pelo ato de matar, aquilo tudo que não condiz com a divindade pela qual anseio. Assim, o sacrifício não é apenas um ato de tortura e de crueldade como muitos pensam, mas sim um gesto poderoso e implacável no sentido de aproximar-nos da sacralidade da natureza que vive através de nós.

A cerimônia da Dança do Sol portanto tem o sentido de consagrar através da dor aqueles que serão capazer de defender seu povo. Através desse gesto de união mística com a energia criadora e vivificadora do Sol, os guerreiros de um clann mostram para o mundo suas surpreendentes capacidades que os tornam aptos a assumir o papel de proteger os seus do medo, das dúvidas, das ameaças, dos inimigos. A lição calou em mim de uma forma bem clara. No momento e no dia em que estávamos para fazer nossa primeira apresentação com nossos novos “protegidos”, eu estava sendo chamado a assumir meu papel como guerreiro e como Ma-Ho, o homem que tem duas almas, uma masculina e uma feminina. O significado dessa apresentação seria sacrificial, uma espécie de consagração. De fato, apresentar-se em um Pub é sempre uma batalha, algo para guerreiros apenas. São tantos os problemas técnicos, tantas as formas do caos interferir no trabalho, que qualquer pessoa mole pode ser devastada por isso. Eu mesmo já fui. Mas desta vez eu tinha uma outra responsabilidade em mãos, a de além de fazer meu próprio rito, auxiliar nos ritos de iniciação de pessoas que eu amo, pessoas que são meu povo, meu clann. Ser uma Árvore do Sol, uma força da vida com a qual o povo pode contar.

E assim foi. Logo antes da apresentação, durante o show da Dundalk, podia sentir o que estava por vir. Antes eu tinha auxiliado nossos amigos na passagem de som, me certificado de que tudo poderia estar o mais perfeito possível, dentro das condições que o espaço oferece, é claro. E por ter uma outra banda acompanhando, pudemos relaxar um pouco mais. Enquanto assistia ao show da Dundalk, conversava com a Dora Smecke, dançarina irlandesa e uma das pessoas que mais amo neste mundo. As irmãs da Lúcia estavam logo ao lado, bem como Edson Mazieiro que foi fundamental na história do grupo e Aline Santos, que tinha vindo de Londrina ansiosíssima para nos ver tocar. Rodeado de pessoas amadas e mais ainda que estavam por vir, minhas melhores amigas do coração, eu bebia Guiness em uma pint majestosa e me preparava espiritualmente para fazer minha parte. Todos estávamos no melhor dos espíritos.

Abrimos o show falando a invocação galega Cabeço de Fráguas. Para quem estava ali poderiam ser um monte de palavras incompreensíveis, mas mesmo assim pude capturar olhares de admiração e aprovação.

Feita a invocação às Musas de Lusitania, saudei a todos que estavam ali e anunciei a dança bretã, a Hanter Dro, que é coisa seríssima. E logo nas primeiras batidas do tambor me arrepiei. O duende estava ali e estava terrível. O Ivan quebrou sua baqueta mais especial, a que seu pai havia feito para ele, a primeira. Estávamos tomados e prosseguiríamos assim até o final. A performance foi arrasadora, o público pulava até quase bater a cabeça no teto do Pub. A sabedoria popular irlandesa diz que se os músicos não conseguem tirar as pessoas das cadeiras então eles falharam. Não foi o caso nunca conosco, mas desta vez, se tivesse sido uma batalha teria sido um massacre. Não foi como fazer amor com o público, estava mais para sexo animal. Terminamos a primeira entrada, olhamos um para a cara do outro e dissemos:

“Caralho!”

Depois veio o set híbrido, uma façanha de colocar primeiro os oito músicos das duas bandas depois dez, em um palco que parece uma lata de sardinhas. No entanto conseguimos, e detonamos quatro músicas, duas da escolha da Leannan Shee e duas da Dundalk. Nós até tocamos “Toss the Feathers” que é uma das músicas instrumentais que mais gosto e cujo título sugere rituais de feitiçaria e oráculo. Assim, como auspício de consagração, nenhum dia poderia ter sido melhor até hoje na história deste orgulhoso grupo.

No segundo set, haviam menos pessoas no público, e estávamos com o tempo esmagado, poderíamos tocar no máximo umas cinco músicas. Escolhemos as mais incitantes. Pensei que seria mais fraco, mas na verdade o público menor criou mais espaço para as pessoas dançarem. Elas dançaram. Alucinadamente.

Um cara até mesmo gritou do alto da escada que eu era Hank Williams III. Eu ri e ele riu, e me senti grandemente honrado.

My Lagan Love

A maior parte das pessoa parece aceitar hoje em dia o fato de que o mundo não tem alma, que as pessoas, os animais e as coisas não tem alma, de que alma é uma crença supersticiosa e obscurantista de povos primitivos. Apoiadas por filósofos aracnídeos que vêm da França, elas se doam esse tipo de filosofia porque com ela podem fazer o que bem entenderem de suas vidas e do mundo. Os bem-pensantes da contemporaneidade na verdade apenas desejam a destruição de todos os valores e de todo o conhecimento e tradição. Qualquer fé, qualquer espiritualidade é para eles espúria e eles se arvoram inimigos de qualquer espécie de misticismo. Como me repugna essa aristocracia do pensamento vingar exatamente na terra onde meus ancestrais guaranis – que foram, aliás, destituídos e massacrados e escravizados por europeus bem-pensantes – viviam suas vidas em relação próxima com a essência das coisas e para quem tudo que não fôsse sagrado era simplesmente um inferno. Isso quase me faz chorar.

Por outro lado, há também aqueles que reconhecem isso e mesmo apesar da falta de uma cultura tribal verdadeira ainda assim procuram impregnar suas vidas de um sentimento primitivo, crias suas próprias tradições, manifestar uma sensibilidade verdadeiramente arcaica. Nós somos parte desse movimento de resistência à arrogância européia que quer fazer pensar que a mente humana pode mesmo sobrepujar a natureza. Não somos inimigos do pensamento – nem por certo dos filósofos franceses – apenas não temos a pretensão de dizer que haja alguma coisa de universal em nossas limitadas especulações. Estamos tão próximos dos sonhos e dos movimentos, tão próximos dos sentidos e do corpo, que todo esse palavrório que procura explicar as coisas provocando incerteza a todo custo nos parece desagradavelmente desnecessário. Há pessoas que não compreenderam Nietzsche que pensam que o filósofo pagão era inimigo da crença, inimigo dos deuses, quando na verdade ele procurava desesperadamente reinventar um paganismo que permitisse a fé para além da morte do cristianismo. Todos se lembram que “deus está morto”, mas ninguém se lembra que ele acusava os “modernos” de não terem força suficiente para crer, ou que ele dizia que o pagão é a mais elevada forma de afirmação da vida.

O que mais me toca no entanto, em relação a todos esses seres venerados pelos carregadores de livros e citadores de textos, são os posicionamentos medíocres que eles levantaram sobre as mulheres. A enquete sobre sexualidade dos surrealistas é simplesmente medonha. Não há nada ali da imaginação e da inventividade que os surrealistas apregoavam. São um punhado de opiniões machistas e pequeno-burguesas que me fazem querer vomitar. De alguma maneira, sou visceralmente incapaz de apreciar qualquer um que não saiba reconhecer a divindade das mulheres, pois essa é a pedra de toque de qualquer pensamento para mim. À parte de qualquer filosofia feminista, o que se pensa e se diz das mulheres para mim reflete o que se pensa e se diz da matriz geradora, da força de criação, da suavidade, da delicadeza, da crueldade da natureza também, mas que é uma crueldade completamente diferente da nossa. E o que isso revela é que existe um total descaso pela expressão feminina, um total descaso por tudo que não se afirma à força. Há uma tirania das palavras e uma total deselegancia dos gestos, que é creditada a um “século despedaçado” ou a um “discurso pós-contemporâneo” ou a qualquer título pedante. Me desculpem se este texto insultou alguém... a paixão exaltada lança farpas.

sábado, 20 de outubro de 2007

Interview 1

Porque música celta? Por que escolher uma tradição que está tão distante ao invés de algo mais próximo ou mais comercial?

O motivo pelo qual eu comecei a tocar música tradicional e depois me apaixonei completamente por isso foi na verdade a minha desilusão com o mundo e com as pessoas que me cercavam. Muito depois é que eu fui perceber o quanto eu estava dentro desse universo. No começo era mais uma questão de escolher algo o mais diferente possível da minha realidade. Eu fiz essa escolha mais ou menos entre dezesseis e dezoito anos, nesse período. Comprei um violão de doze cordas e comecei a tocar e compor músicas. Eu sempre adorei folk. Sempre me pareceu a coisa mais natural a se fazer. Eu adotei a afinação que me disseram que era celta (risos) e comecei a tocar.

O que é apaixonante na música tradicional é a maneira como ela faz soarem belas coisas que são na verdade uma desgraça. E eu gostava dessa estética sublime, porque na verdade eu sabia que um dia eu inevitavelmente iria me deparar com o fato que quase tudo que acontece é uma desgraça (risos) e que... é, você sabe, eu não tocava em bandas ainda então não tinha a mínima idéia de algo trágico em minha vida (risos) mas eu podia pressentir... o trágico não é simplesmente a desgraça. Trágico é ser dilacerado por todos os sentimentos naturais e antinaturais que decorrem da história de uma banda, mas isso é outro papo. Naquele tempo eu era muito mais feliz, mas a inocência não faz arte muito boa. Então eu me refugiei em algo que eu sabia ser verdadeiramente poderoso.

Então você não acredita em originalidade?

Eu acredito profundamente em originalidade. Mas para mim originalidade tem mais a ver com como se faz algo e não o que se faz. Ou seja, eu prefiro muitas vezes interpretar algo que já está aí, e fazê-lo de uma maneira completamente diferente, porque é essa diferença que conta. É a forma como você faz. Eu não acredito que nenhum desses eus líricos que povoam o mundo da música popular de hoje façam nada original. Cada vez mais é a mesma música, a mesma história. Então, eu acho muito mais original pegar uma canção popular do séc. XVIII e tocá-la na guitarra elétrica, do que tentar me inserir em um dos catálogos musicais e comportacionais que estão aí.

Mesmo assim você é um compositor bastante prolífico... como isso acontece? Como é o processo de composição de alguém que preferiria não compor?

Eu não troco nada por compor. Não existe prazer maior na vida. Mas eu entendo o que você está tentando dizer, e vou tentar explicar isso da melhor maneira possível. Acontece que muitas vezes uma canção tradicional é capaz de expressar o que eu sinto de uma maneira que eu jamais iria sequer imaginar. Elas tem antiguidade, entende? Como seres vivos elas são muito maiores do que eu sou... então não é difícil perceber o porque da paixão por algo assim... é a poesia de uma época em que as pessoas eram mais humanas do que hoje, e se preocupavam com coisas menos antinaturais. Tem peso, tem incorporação ali... perto disso nossos dramas contemporâneos parecem banais, porque nós somos menos do que nossos antepassados, porque eles tinham que ser muito mais. Eles não tinham todo esse conforto. Então, isso é uma coisa... Mas depois de vários anos tocando isso você percebe que está começando a pensar como se estivesse dentro de uma dessas canções. Você desperta a voz do menestrel andarilho que estava adormecida dentro de você, e ele começa a falar em sua linguagem própria, e ele te põe em contato com a verdadeira vida. Porque as canções tradicionais e as canções folk só falam daquilo que realmente importa na vida. Daquilo que não pode ficar sem ser dito, e você começa a buscar essa voz e essa entonação que dizem exatamente isso, que você não é mais um palhacinho na corte digamos da indústria musical. Você realmente se importa com aquilo que está dizendo, e vai tentar dizê-lo da melhor maneira possível porque há séculos de boa arte atrás de você que te impedem de fazer diferente.

O que fala o menestrel contemporâneo?

Basicamente o mesmo que os antigos. Ele só conta menos histórias, porque a fala contemporânea tem mais a ver com fragmentos, com capturar imagens internas. Ele fala de dor, de amor, de morte, dos seus sonhos. Mas ele traz a magia antiga ao falar disso tudo, a antiga reverência e conexão com a Terra. Ele é alguém que não se esqueceu do que é mais importante. Você vê, no folk há toda uma questão de reverência e hierarquia. É totalmente o oposto do mito solar do superstar, porque na raiz do folk há esse sentimento de algo muito maior que nós e que nos atravessa, e esse algo é que é importante. A Musa, o inconsciente, a natureza operando. Não mais um eu heróico e seus feitos mirabolantes. Ou então, se há um eu heróico, trata-se de um verdadeiro eu heróico, porque esta arte te impede de mentir... De qualquer maneira, o gênio do folksinger é saber que ele não é um gênio, mas o guardião de um.

O guardião de um gênio... interessante.

É, e esse gênio pode ser extremamente pessoal ou extremamente coletivo, dependendo do corpo em que ele esteja agindo. Ele pode ser completamente diferente daquilo que você é. Não é esse o meu caso, porque eu tento ser o mais parecido possível com aquilo que observo operando dentro de mim. É uma natureza selvagem e agressiva, e dá para entender por que a maioria das pessoas passa a vida inteira fugindo disso. É como um demônio, um daimon. E ele te obriga a coisas que você não faria se estivesse preocupado apenas com seu bem-estar. O verdadeiro artista carrega o peso dessa desgraça: para ele seu bem-estar importa muito pouco. Ele não hesita em sacrificar seu bem-estar para obter uma arte mais poderosa. Ele vai até o fundo com isso.

Há quem diga que a música folk é anacrônica.

Sim, é verdade. Provavelmente ela é mesmo... Mas isso importa pouco para mim. Na verdade, eu gosto disso. Porque tudo que se faz hoje em dia é de certa forma anacrônico. O próprio rock é uma apologia à história do rock. Eu acho isso saudável. Tem a ver com saber envelhecer, porque todo mundo quer renegar a velhice, todo mundo despreza o que é velho. Todo mundo quer juventude eterna, novidade eterna, e por isso vivemos culturalmente numa eterna adolescência. Num eterno culto à descoberta sexual... e deixamos de lado tudo aquilo que pareça ser mais sério e mais grave. Então eu acredito no que é velho, e se dizer que o que eu faço é anacrônico dá a idéia de que há algo velho acontecendo, eu acho ótimo. Isso não tira nem um pouco o valor do que estamos fazendo, porque nós queremos isso mesmo.

Mas a arte tem a ver também com romper com as tradições e romper com as velhas tábuas de lei, e com os pais e com o passado...

Qualquer bom compositor faz exatamente isso, mesmo que suas canções soem eternamente arcaicas. Pense nos primeiros artistas folk. Eles eram andarilhos, foras-da-lei... Eles eram em si uma ruptura, então não precisavam buscar uma arte que lhes desse essa ruptura. Eles sentiam na carne todo o peso e toda a dor dessa ruptura, porque estavam fora da sociedade e ninguém dava a mínima para eles. E eles tinham apenas a própria poesia e as próprias canções para aliviar suas dores.

O rock tem muito disso.

Sim, o rock é, ou foi, exatamente isso. Imagine toda a histeria racista que acompanhou o nascimento do rock. Imagine toda aquela substância densa, carregada de sexo e criminalidade do blues e do folk negro, súbitamente irrompendo no mundo dos brancos de classe média e alta, todo puritano e hipócrita. Por isso o rock é também uma tradição. Além de provir de uma tradição, ele já estava envenenado desde o princípio por toda essa poesia da vida, esse conhecimento do mundo e da verdade dolorosa do mundo. E também dos prazeres do mundo. O rock deu aos jovens uma nova tradição, mas em essência essa tradição não era muito diferente da tradição antiga, em termos de vivências e de poesia. Essa tradição era a fusão daquelas tradições mais antigas dos negros e dos celtas, e a princípio isso era inadmissível para as autoridades, os pais, os professores. Hoje em dia, é claro, não estamos mais falando da mesma coisa, porque hoje tocar rock é ser bem conservador, na verdade. É a resistência dos instrumentos musicais frente ao novo mundo digital.

Você se considera um conservador?

Eu certamente conservo algo... Mas não penso que isso faça de mim um conservador, porque não sou muito purista, e no folk para ser conservador é necessário ser purista. Num outro sentido, eu represento sim um movimento de resistência contra, principalmente, a idiotice do mundo (risos)... Mas não foi isso que eu quis dizer. Na verdade, o que eu quis dizer foi que há todo um status quo que o rock simplesmente não desafia mais, porque ele é agora parte desse status quo. Com o folk é um pouco diferente, porque ele é um sítio fora da estrada, onde os aficcionados vão. Por maior que seja o mercado cultural para esse estilo hoje, ele sempre será algo à parte. E sempre será uma resistência, você sabe... Canções dedilhadas num violão em um mundo cada vez mais apaixonado por barulho com certeza é resistência.

Você não está apaixonado pelo barulho?

Sim, absolutamente apaixonado pelo barulho. Por isso eu não sou purista nem conservador, nem deixo de compor, porque eu sou só mais um filho do rock que cresceu nos anos noventa ouvindo Ministry e Neubauten. Não há nada de errado com isso, nada de controverso. Não sou contra nada em si. Como a música ou a realidade eletrônica, por exemplo. Não quero um mundo agricultural esquecido no passado. Quero tudo isso junto, mas para que isso faça sentido é necessário conhecer as raízes das coisas.

Ou os botões certos para apertar...

Ou isso, também... De qualquer forma, é necessária uma austeridade incomum para dar acesso ao gênio ou à Musa. É preciso conhecer ao menos a técnica, e isso em si já é um sacrifício.

Voltando à questão da originaliade e do gênio. Onde está a linha que separa o trabalho, a austeridade, e a inspiração? Muitos compositores renegam completamente a idéia de uma inspiração divina para o que fazem...

Não acredito que haja algo como uma linha divisória, para mim ambas as coisas estão absolutamente entrelaçadas. As the Morrigan Sings é um bom exemplo para isso, porque foi uma música sonhada. Eu já disse que considero o próprio inconsciente como o gênio, a Musa, e essa música veio diretamente da Musa, por assim dizer. No entanto eu tive que sentar e escrever a história que me foi contada, e eu escrevi na minha linguagem própria, no meu estilo. Esse estilo vem de anos de escrita, de anos desenvolvendo uma voz. Esse é o trabalho, a austeridade. A inspiração é divina e a técnica é mundana. É necessário abraçar as duas coisas.

Como se adquire técnica para esse estilo de composição? É uma questão de estudo ou uma questão de vivência?

Ambas. Na mesma proporção. Ou seja, por mais que hajam coisas para as quais se é preciso despertar, livros que você precisa ler, ilusões que é necessário abandonar, ao mesmo tempo é essencial que esse trabalho não fique só na mente. É preciso confrontar o próprio destino, por assim dizer.

Como assim, confrontar o próprio destino?

Confrontar o próprio destino é não se ater ao script que é imposto pela vida a você. É não se acreditar algo, não acreditar que aquilo que está aí é definitivamente o que você deveria estar vivendo... porque há uma superstição que diz que se algo está acontecendo é porque deveria acontecer, que tudo está premeditado por alguma força divina. Se você quer ser um artista, esse pensamento deve ser afastado, eliminado. Ser um criador significa criar a própria vida, significa uma recusa diante do eu, uma recusa de alimentar a fome insaciável desse ego corruptor que deseja almofadas e bem-estar. Significa que você precisa se reinventar completamente e constantemente, e não é o mundo ou as circunstâncias externas que devem fazê-lo, é você. Então, ao invés de ficar se lamuriando sobre como a vida te trata, ou como as pessoas te tratam, você deveria dar a sua vida por algo, ou por alguém. Dar a sua vida pela música. Pela poesia. Derramar o próprio sangue ao invés de poupá-lo. Confrontar o perigo ao invés de evitá-lo. Para mim o ego é como o deus sacrificial das culturas agrárias. Ele está constantemente sendo esmagado, dilacerado, desmembrado, crucificado... Aqueles que resolvem se identificar apenas ao ego sofrerão com razão todas essas mortificações... Mas aqueles que conseguem fugir a isso, que conseguem se pôr no fluxo incessante da mente como uma totalidade, e ser a Musa que sacrifica e faz renascer o deus sacrificial, não só irão aprender a se rejubilar cada vez que o ego morre, como também darão à luz um ego novo, fecundo, implacável. E isso é o que acontece toda vez que se cria algo. Você está dizendo não àquela parcela de você mesmo que deseja ser poupada, que quer condescendência, que quer conforto. A arte não é a pátria para os que querem conforto. A arte é para os que querem explodir. Não tem nada a ver com ser condescendente, com aceitar, e sim com violência, com fome, com sexo, com morte. Com a loucura. Religiões tem a ver com pacificar o rebanho. Arte tem a ver com lobos predando os rebanhos.

Você faz soar como um ato criminoso...

Arte é um ato criminoso. Abandonar o script, como isso não seria criminoso... Ao mesmo tempo, esse crime protege a mente de um crime maior perpetrado desde os primórdios pelos bons e justos, pelas autoridades, pelos sacerdotes, pelos pais. Natural e antinatural se fundem na arte para impedir que a imaginação estanque, que a vida seque. Muitos crimes são cometidos por esse motivo, pela fome. Só os famintos são bons artistas, e a única condição em que se cria boa arte é de certa forma um crime, porque liberdade individual, individualismo, essas coisas são crimes (risos)... e o artista é a expressão de um individualismo exacerbado. Isso não tem nada a ver com o fato de que ele pode muito bem viver socialmente ou não. Como se diz... vida dupla. Loucura controlada. O mais individualista como o mais apto a suportar a sociedade. O mais antisocial como a única esperança da sociedade. Isso não soa como uma traição?

A arte deve ser necessáriamente confrontadora ou destruidora?

Não, a arte deve ser necessáriamente a expressão de uma vida, de uma vida plena, de um excesso de vida e de imaginação. A vida é processo. A vida é que é importante. Parece idiota dizer isso, mas sem vida estamos mortos. E a ausência de vida é a realidade de uma grande parcela da humanidade. Onde quer que não se queira lutar pela própria vida, pelas próprias idéias, pelos desejos, ali se nega a vida. Onde quer que se negue a vida a arte não pode florescer. E negar a vida pode ter muitas formas. Uma delas é dar demasiada importância a tudo que acontece consigo mesmo e com os que estão ao redor. Porque da forma como vivemos hoje, a verdadeira vida se esconde em outros recantos. E é fácil perceber como aqueles que carregam os estandartes da vida em abundância são perseguidos. Os guardiões de rebanhos estão sempre atentos com qualquer um que tenha um mínimo de audácia para desafiá-los e às suas leis.

E o sofrimento?

O sofrimento é inevitável, e ele deve ser mais um estímulo para a criação, ou então a obra irá se degenerar em niilismo e suicídio. Ao menos para mim. Eu prefiro me assassinar em um poema a incitar alguém a negar a própria vida por qualquer desculpa. O sofrimento pode não ser fácil, mas de modo algum é inútil. É fácil demais perder a cabeça, qualquer idiota pode fazer isso. Mas quando você é um artista, ele é mais uma arma, mais um estímulo. Ele pode ser grandioso. É dessa perspectiva que muitas canções folk foram escritas. O desespero, o medo, a dor, a raiva... Tudo isso precisa de uma plataforma para falar sua fala também. E a arte que traz esses elementos muitas vezes conforta almas atormentadas... Quando eu estou mal simplesmente não consigo ouvir música feliz. Não é uma decadência, é uma pequena dose de veneno que eu tomo e que me cura na maior parte das vezes. Não buscar a alegria dos covardes... Não buscar a alegria ao todo. O sofrimento tem uma alegria própria, acessível muitas vezes apenas através da arte. Sim... é necessário afirmar tudo isso, não há nenhum escape.

Gostaria de fazer algumas perguntas de cunho mais pessoal agora. Qual é a área de sua vida que você gostaria de explorar na arte e ainda não o fez?

Existe todo um outro lado de mim esperando a hora certa para sair. Acho que tem a ver com Arte Industrial... Isso durante muito tempo causou um certo mal estar em mim, porque aparentemente era o oposto daquilo que eu estava fazendo... O oposto da inspiração agricultural e selvagem, da inspiração caipira por assim dizer. Veja, eu cresci com isso dentro de mim. Meu pai foi ferreiro a maior parte da minha vida. Ele tinha uma fábrica de torres, e quando eu era criança ficava fascinado quando ía passar o dia na fábrica. Depois eu trabalhei lá durante anos, e os sons das máquinas se tornaram uma obcessão para mim. Aquilo era música industrial pura, o som de uma fábrica em funcionamento. Eu costumava entrar em transe ouvindo as máquinas. Sentia muitas vibrações interessantes ali, como por exemplo, o som do torno mais o som das serras me lembravam a tampoura indiana, aquele instrumento que parece um sitar e que dá aquela nota contínua que representa a eternidade... e assim por diante. Eu sempre sonhei em fazer um album com os sons da fábrica, e isso me persegue até hoje. É algo que eu certamente irei explorar um dia desses.

Como você reage a rotulações? Você teme ser rotulado?

Eu não tenho a mesma opinião que outras pessoas sobre os rótulos. Na verdade eu acho que são bem importantes. Os rótulos acabam se tornando muito importantes quando você está estudando algo, por exemplo. Eles funcionam como títulos em um índice. Se não há um rótulo, é bem possível que com o passar do tempo a coisa se perca, seja esquecida. Os artistas são grandes rotuladores, e quem disser que não está mentindo. É por isso que as coisas têm títulos, e eu sou apaixonado por títulos. Toda banda tem um nome, o que por si só é um rótulo. Os rótulos ajudam a caçar conteúdos, por assim dizer. Eles ajudam a identificar seus interesses.

Qual é seu sonho de vida?

Neste exato momento meu sonho é que a vida não exploda em cima de mim. Que o perigo potencial que as pessoas representam não se torne em desastre de fato. Você sabe, não há nada mais perigoso do que pessoas convivendo juntas, pessoas com suas obsessões, seus desejos, seus segredos... E tudo que eu sonho é que isso não exploda antes que eu possa fazer minha própria passagem. Depois eu me dou o direito de sonhar.

Como é seu relacionamento com companheiros de trabalho?

Na verdade, é melhor do que poderia ser. Devido à intensidade do meu individualismo poderia ser absolutamente impossível trabalhar comigo. No fundo eu não gosto de trabalhar com outras pessoas. Não gosto de ter que dividir minha visão, de ajustá-la aos outros. Mas ao mesmo tempo, é estimulante porque isso te desafia a não se desviar do próprio rumo mesmo que mude de direção.

Eu sou extremamente duro com o que faço. Detesto jogos de ego, detesto competir. Mas detestaria mais que a coisa não fôsse feita. E, no fundo, os outros acabam sendo uma oportunidade de deixar de lado a dor de ser eu mesmo.

Sim, pelo tipo de artista que sou poderia ser um desastre completo trabalhar em grupo, mas miraculosamente não é. Não me entenda mal... eu amo meus amigos. Mas como artista, dentro da arte, eu não tenho amigos, não me importo com amigos. Como artista eu só quero transcender a condição fútil em que fomos criados. Não há lugar para amabilidades dentro da arte, e é aí que é necessário discernimento, pois quão mais duro eu sou com alguém dentro de um grupo, significa na verdade que eu me importo mais com o desenvolvimento e o aprofundamento dessa pessoa. Eu mesmo sou quem mais apanha de mim ao longo desse processo, porque eu sou a pessoa de quem exijo mais.

E como é trabalhar com a própria esposa?

Isso é o mais importante para mim, a coisa mais maravilhosa de todas. Ela é muito parecida comigo, uma pessoa dura, inflexível no tocante à arte e à perfeição da obra. E ela tem anos a mais de arte, de conhecimento da arte e da história da arte e mesmo que ela possa dizer que isso não faz muita diferença, eu admiro muito isso. É muito bom viver assim, porque um estimula o outro a se aperfeiçoar mais e mais, e também a partilha das descobertas é muito estimulante. Ela é extremamente dura comigo. Às vezes é como se eu estivesse me olhando no espelho. É nela que eu vejo todas as outras possibilidades, as coisas que ainda não fiz e não consigo imaginar, as coisas do futuro. Meus sonhos como artista brotam do corpo dela agora. Ou melhor, do meu corpo que sorveu uma parte dela e se tornou em uma terceira coisa. A Arte é sempre um triângulo. É sempre uma espécie de infidelidade.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Registro

Amanhece um dia sombrio. Não consegui dormir mais que uma hora. Estou pleno de energia, no entanto, pleno de entusiasmo. A divindade que me preenche – poderia dizer também o dia que me preenche – é silenciosa e doce. Percebo no ato a solenidade no ar, o vento gelado. Nosso primeiro concerto no SESC Vila Mariana. A Musa parece estar satisfeita, pois há frio e houve chuva durante a noite. As fadas unseelie vieram nos propiciar. A Lúcia só está preocupada com os instrumentos.

No camarim do SESC. Me isolo do habitual burburinho da banda. Sento-me diante das grandes janelas de vidro – que é sagrado para mim – e contemplo o cinza das núvens. No começo do meu caminho eram esses dias que me levavam à poesia. Pratico tin whistle. O silêncio invade a sala por poucos instantes. Me impressiona o fato de muitos músicos não saberem apreciar o silêncio, principalmente na iminência de um concerto. Eu desejo ardentemente o silêncio. Há algo erótico no silêncio para mim, algo como presenciar o ato de amor dos Seres Trovão. Mas não importa. Nada pode me tirar do silêncio quando estou nele. Um que se conecte já é suficiente para a Musa, que aprecia a unidade. O camarim fica no sexto ou sétimo andar. A música retira todas as falas, é um banho mercurial. Tomo também duas cervejas para azeitar a garganta.

Minha relação com a Lúcia – minha mulher e percussionista da banda – nesse momento é distante, o que é apropriado. Ela é a única cuja seriedade é suficientemente grande para que não precise estar em silêncio. Quanto a mim, quero apenas interiorizar este momento.

Quando a hora chega, descemos para a Praça de Eventos. Carla, a produtora do SESC havia dito que um minuto antes o lugar estava vazio, mas ao chegarmos encontramos um público respeitável. Ótimo. Aliás, ela também acha, até se impressiona. Gosto de Carla, ela é uma pessoa doce. É muito auspicioso ser conduzido até um palco por uma pessoa doce. Vejo no público várias pessoas conhecidas. Não consigo ser profissional o suficiente para não cumprimentar várias delas.

O concerto. Estou duro como uma pedra no palco. Demora para o duende me tomar, talvez por causa das pessoas conhecidas no público, talvez pelo tamanho do espaço que intimida. Mas apesar disso, o raciocínio está ágil o suficiente para impressionar pela impecabilidade e pela precisão. Tem-se que conquistar o público de alguma maneira, e a melhor é como fazer amor, mas não hoje. Hoje é preciso apelar para técnicas, ao menos no começo. Focalizar-me em pessoas conhecidas e queridas, pessoas que têm uma grande aceitação do que estamos fazendo, como a Malu, o Lucas e a Mayla, isso ajuda bastante. O alívio da tensão é imediato. Olhar para a Lúcia também, sua concentração é contagiante. Mas olhar para os amigos presentes que não vejo há muito, ou para meus pais, atrapalha um pouco. Fechar os olhos ajuda, mas não gosto de tocar com os olhos fechados. Se não fôsse tin whistle não estaria preocupado com nada disso. Mas a tin whistle é um instrumento difícil para mim. Não tenho nenhuma garantia com ela, por mais que estude, e que tenha acertado tudo perfeitamente no ensaio anterior, ela me é traiçoeira. Felizmente tudo dá certo, e o duende vem justamente numa música de tin whistle. Quase no final do concerto, mas tudo bem. É suficiente que venha. Quando o duende vem, o ato de amor se completa.

Pensamentos de um dia com os Seres Trovão

Folksongs. Bob Dylan escreveu em suas Crônicas que as canções folk eram como uma religião para ele. É exatamente assim que me sinto. As canções repõe o que me é retirado por viver afastado da natureza, elas são minhas plantas, meus pássaros, minha água e meu ar puro. Tem sido por muitos anos e continuarão a ser. As canções folk são eternas, não há nada de descartável nelas. Estão impregnadas da vida na natureza, e para cantá-las é necessário um longo sacrifício. É necessário fazer-se sagrado, pois a experiência de alguém transparece em sua voz. E uma canção folk não soa bem em qualquer voz, é preciso tornar-se velho, tão velho como elas. Só através do sacrifício se pode lográ-lo. Quando se entra no espírito da tradição, é possível tornar-se como uma árvore centenária. É possível ser como a relva que sempre nasce e floresce de novo e de novo. Ao longo dos anos eu tenho visto essas canções soprarem no rosto das pessoas com cheiro de florestas e tenho visto a maneira como as pessoas sorvem essas canções, o prazer que lhes trazem. Percebo que são mágicas, pois trazem lugares e épocas, trazem vida. São canções muito vivas, que sobreviveram ao desaparecimento e à obliteração dos séculos. Eu sou um ser possuído por essas canções.

Uma canção é como uma pintura. A pintura e a canção a meu ver são as mais eróticas das artes. Uma canção se assemelha a uma pintura quando é grandiosa.

Vivi muito tempo perto da natureza e muito tempo longe. Se não fôssem as canções folk teria perdido o elo místico com a natureza, pois a cidade nos torna ateus. Teria me matado, pois sou fervorosamente religioso, preciso de fé absoluta. Preciso dela para não me diluir no mundo dos macacos. A cidade oferece pouco em vida, é preciso ser a vida em oferta infinita, em quantidade infinita. A cidade rouba muito. Não desejo ser um homem, nasci muito pequeno para ser um mero homem. Não desejo nada como os outros desejam, e busco desaparecer em uma canção, da mesa forma que busco desaparecer quando faço amor, deixando existir apenas o ritmo eterno, a essência da vida. Essa é minha religião e minha fé absoluta na arte, e sem a arte eu estaria morto. A arte nos devolve a liberdade de essência.

Na natureza como na arte é impossível ser ateu ou crer em um só deus.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Pensamentos Defumados após Ensaio Leannan Shee/Dundalk

Sabedoria das árvores. Na natureza prevalece a sensação da vida, do excesso de vida, e a percepção da divindade imanente desse exagero, desse verdadeiro desperdício, tal divindade é facilmente apagada quando se é obrigado a viver numa grande cidade. Perto de uma floresta o silêncio é solene e sagrado. O próprio silêncio é carregado. Mas viver onde predomina apenas uma espécie, ainda uma espécie grotesca como a humana, deprime e leva por fim ao desejo de negar tudo. No meio disso tudo, nada mais detestável que essa espécie de ateísmo socialista que é moda dos burgueses e dos artistas. Na verdade estão distanciados da natureza a tal ponto que seus próprios pensamentos deixaram de servir a seus sentidos, e sua vida enfraquece por falta de contato com a substância da vida. Precisariam de um necessariamente desagradável mergulho em um mundo infestado de insetos e de plantas, o que para suas almas seria como um estupro, um mundo filosoficamente infestado de toda sorte de vida que rasteja e cresce, e tenta se sobrepor às outras com todas as suar artimanhas. Isso para terem uma idéia breve do que é verdadeiramente divino e divindade. Para experimentar o divino é preciso se abrir em uma igualmente descomunal quantidade de sentidos tal qual a vida que há em uma floresta. É preciso se esquecer, saber morrer, ou ainda, matar. Matar com sinuosa maestria, como a serpente ou o escorpião.
Estar perto dos sentidos, isso me é o mais caro. E que meus pensamentos tenham o único sentido de melhor me fazerem gozar meus sentidos, isso para mim é a coisa mais cara de todas. Não quero nada que me desvie dessas realidades sagradas, as mais sagradas de todas. Não desejo servir a nenhum ego nem buscar nenhum desfecho heróico para minha história. Desejo me aniquilar em galáxias de sentidos.
O que realmente importa passa desapercebido aos olhos da multidão, mas aquele que amou ficar sozinho com a natureza sabe ver.

sábado, 2 de junho de 2007

First Hunt