Porque música celta? Por que escolher uma tradição que está tão distante ao invés de algo mais próximo ou mais comercial?
O motivo pelo qual eu comecei a tocar música tradicional e depois me apaixonei completamente por isso foi na verdade a minha desilusão com o mundo e com as pessoas que me cercavam. Muito depois é que eu fui perceber o quanto eu estava dentro desse universo. No começo era mais uma questão de escolher algo o mais diferente possível da minha realidade. Eu fiz essa escolha mais ou menos entre dezesseis e dezoito anos, nesse período. Comprei um violão de doze cordas e comecei a tocar e compor músicas. Eu sempre adorei folk. Sempre me pareceu a coisa mais natural a se fazer. Eu adotei a afinação que me disseram que era celta (risos) e comecei a tocar.
O que é apaixonante na música tradicional é a maneira como ela faz soarem belas coisas que são na verdade uma desgraça. E eu gostava dessa estética sublime, porque na verdade eu sabia que um dia eu inevitavelmente iria me deparar com o fato que quase tudo que acontece é uma desgraça (risos) e que... é, você sabe, eu não tocava em bandas ainda então não tinha a mínima idéia de algo trágico em minha vida (risos) mas eu podia pressentir... o trágico não é simplesmente a desgraça. Trágico é ser dilacerado por todos os sentimentos naturais e antinaturais que decorrem da história de uma banda, mas isso é outro papo. Naquele tempo eu era muito mais feliz, mas a inocência não faz arte muito boa. Então eu me refugiei em algo que eu sabia ser verdadeiramente poderoso.
Então você não acredita em originalidade?
Eu acredito profundamente em originalidade. Mas para mim originalidade tem mais a ver com como se faz algo e não o que se faz. Ou seja, eu prefiro muitas vezes interpretar algo que já está aí, e fazê-lo de uma maneira completamente diferente, porque é essa diferença que conta. É a forma como você faz. Eu não acredito que nenhum desses eus líricos que povoam o mundo da música popular de hoje façam nada original. Cada vez mais é a mesma música, a mesma história. Então, eu acho muito mais original pegar uma canção popular do séc. XVIII e tocá-la na guitarra elétrica, do que tentar me inserir em um dos catálogos musicais e comportacionais que estão aí.
Mesmo assim você é um compositor bastante prolífico... como isso acontece? Como é o processo de composição de alguém que preferiria não compor?
Eu não troco nada por compor. Não existe prazer maior na vida. Mas eu entendo o que você está tentando dizer, e vou tentar explicar isso da melhor maneira possível. Acontece que muitas vezes uma canção tradicional é capaz de expressar o que eu sinto de uma maneira que eu jamais iria sequer imaginar. Elas tem antiguidade, entende? Como seres vivos elas são muito maiores do que eu sou... então não é difícil perceber o porque da paixão por algo assim... é a poesia de uma época em que as pessoas eram mais humanas do que hoje, e se preocupavam com coisas menos antinaturais. Tem peso, tem incorporação ali... perto disso nossos dramas contemporâneos parecem banais, porque nós somos menos do que nossos antepassados, porque eles tinham que ser muito mais. Eles não tinham todo esse conforto. Então, isso é uma coisa... Mas depois de vários anos tocando isso você percebe que está começando a pensar como se estivesse dentro de uma dessas canções. Você desperta a voz do menestrel andarilho que estava adormecida dentro de você, e ele começa a falar em sua linguagem própria, e ele te põe em contato com a verdadeira vida. Porque as canções tradicionais e as canções folk só falam daquilo que realmente importa na vida. Daquilo que não pode ficar sem ser dito, e você começa a buscar essa voz e essa entonação que dizem exatamente isso, que você não é mais um palhacinho na corte digamos da indústria musical. Você realmente se importa com aquilo que está dizendo, e vai tentar dizê-lo da melhor maneira possível porque há séculos de boa arte atrás de você que te impedem de fazer diferente.
O que fala o menestrel contemporâneo?
Basicamente o mesmo que os antigos. Ele só conta menos histórias, porque a fala contemporânea tem mais a ver com fragmentos, com capturar imagens internas. Ele fala de dor, de amor, de morte, dos seus sonhos. Mas ele traz a magia antiga ao falar disso tudo, a antiga reverência e conexão com a Terra. Ele é alguém que não se esqueceu do que é mais importante. Você vê, no folk há toda uma questão de reverência e hierarquia. É totalmente o oposto do mito solar do superstar, porque na raiz do folk há esse sentimento de algo muito maior que nós e que nos atravessa, e esse algo é que é importante. A Musa, o inconsciente, a natureza operando. Não mais um eu heróico e seus feitos mirabolantes. Ou então, se há um eu heróico, trata-se de um verdadeiro eu heróico, porque esta arte te impede de mentir... De qualquer maneira, o gênio do folksinger é saber que ele não é um gênio, mas o guardião de um.
O guardião de um gênio... interessante.
É, e esse gênio pode ser extremamente pessoal ou extremamente coletivo, dependendo do corpo em que ele esteja agindo. Ele pode ser completamente diferente daquilo que você é. Não é esse o meu caso, porque eu tento ser o mais parecido possível com aquilo que observo operando dentro de mim. É uma natureza selvagem e agressiva, e dá para entender por que a maioria das pessoas passa a vida inteira fugindo disso. É como um demônio, um daimon. E ele te obriga a coisas que você não faria se estivesse preocupado apenas com seu bem-estar. O verdadeiro artista carrega o peso dessa desgraça: para ele seu bem-estar importa muito pouco. Ele não hesita em sacrificar seu bem-estar para obter uma arte mais poderosa. Ele vai até o fundo com isso.
Há quem diga que a música folk é anacrônica.
Sim, é verdade. Provavelmente ela é mesmo... Mas isso importa pouco para mim. Na verdade, eu gosto disso. Porque tudo que se faz hoje em dia é de certa forma anacrônico. O próprio rock é uma apologia à história do rock. Eu acho isso saudável. Tem a ver com saber envelhecer, porque todo mundo quer renegar a velhice, todo mundo despreza o que é velho. Todo mundo quer juventude eterna, novidade eterna, e por isso vivemos culturalmente numa eterna adolescência. Num eterno culto à descoberta sexual... e deixamos de lado tudo aquilo que pareça ser mais sério e mais grave. Então eu acredito no que é velho, e se dizer que o que eu faço é anacrônico dá a idéia de que há algo velho acontecendo, eu acho ótimo. Isso não tira nem um pouco o valor do que estamos fazendo, porque nós queremos isso mesmo.
Mas a arte tem a ver também com romper com as tradições e romper com as velhas tábuas de lei, e com os pais e com o passado...
Qualquer bom compositor faz exatamente isso, mesmo que suas canções soem eternamente arcaicas. Pense nos primeiros artistas folk. Eles eram andarilhos, foras-da-lei... Eles eram em si uma ruptura, então não precisavam buscar uma arte que lhes desse essa ruptura. Eles sentiam na carne todo o peso e toda a dor dessa ruptura, porque estavam fora da sociedade e ninguém dava a mínima para eles. E eles tinham apenas a própria poesia e as próprias canções para aliviar suas dores.
O rock tem muito disso.
Sim, o rock é, ou foi, exatamente isso. Imagine toda a histeria racista que acompanhou o nascimento do rock. Imagine toda aquela substância densa, carregada de sexo e criminalidade do blues e do folk negro, súbitamente irrompendo no mundo dos brancos de classe média e alta, todo puritano e hipócrita. Por isso o rock é também uma tradição. Além de provir de uma tradição, ele já estava envenenado desde o princípio por toda essa poesia da vida, esse conhecimento do mundo e da verdade dolorosa do mundo. E também dos prazeres do mundo. O rock deu aos jovens uma nova tradição, mas em essência essa tradição não era muito diferente da tradição antiga, em termos de vivências e de poesia. Essa tradição era a fusão daquelas tradições mais antigas dos negros e dos celtas, e a princípio isso era inadmissível para as autoridades, os pais, os professores. Hoje em dia, é claro, não estamos mais falando da mesma coisa, porque hoje tocar rock é ser bem conservador, na verdade. É a resistência dos instrumentos musicais frente ao novo mundo digital.
Você se considera um conservador?
Eu certamente conservo algo... Mas não penso que isso faça de mim um conservador, porque não sou muito purista, e no folk para ser conservador é necessário ser purista. Num outro sentido, eu represento sim um movimento de resistência contra, principalmente, a idiotice do mundo (risos)... Mas não foi isso que eu quis dizer. Na verdade, o que eu quis dizer foi que há todo um status quo que o rock simplesmente não desafia mais, porque ele é agora parte desse status quo. Com o folk é um pouco diferente, porque ele é um sítio fora da estrada, onde os aficcionados vão. Por maior que seja o mercado cultural para esse estilo hoje, ele sempre será algo à parte. E sempre será uma resistência, você sabe... Canções dedilhadas num violão em um mundo cada vez mais apaixonado por barulho com certeza é resistência.
Você não está apaixonado pelo barulho?
Sim, absolutamente apaixonado pelo barulho. Por isso eu não sou purista nem conservador, nem deixo de compor, porque eu sou só mais um filho do rock que cresceu nos anos noventa ouvindo Ministry e Neubauten. Não há nada de errado com isso, nada de controverso. Não sou contra nada em si. Como a música ou a realidade eletrônica, por exemplo. Não quero um mundo agricultural esquecido no passado. Quero tudo isso junto, mas para que isso faça sentido é necessário conhecer as raízes das coisas.
Ou os botões certos para apertar...
Ou isso, também... De qualquer forma, é necessária uma austeridade incomum para dar acesso ao gênio ou à Musa. É preciso conhecer ao menos a técnica, e isso em si já é um sacrifício.
Voltando à questão da originaliade e do gênio. Onde está a linha que separa o trabalho, a austeridade, e a inspiração? Muitos compositores renegam completamente a idéia de uma inspiração divina para o que fazem...
Não acredito que haja algo como uma linha divisória, para mim ambas as coisas estão absolutamente entrelaçadas. As the Morrigan Sings é um bom exemplo para isso, porque foi uma música sonhada. Eu já disse que considero o próprio inconsciente como o gênio, a Musa, e essa música veio diretamente da Musa, por assim dizer. No entanto eu tive que sentar e escrever a história que me foi contada, e eu escrevi na minha linguagem própria, no meu estilo. Esse estilo vem de anos de escrita, de anos desenvolvendo uma voz. Esse é o trabalho, a austeridade. A inspiração é divina e a técnica é mundana. É necessário abraçar as duas coisas.
Como se adquire técnica para esse estilo de composição? É uma questão de estudo ou uma questão de vivência?
Ambas. Na mesma proporção. Ou seja, por mais que hajam coisas para as quais se é preciso despertar, livros que você precisa ler, ilusões que é necessário abandonar, ao mesmo tempo é essencial que esse trabalho não fique só na mente. É preciso confrontar o próprio destino, por assim dizer.
Como assim, confrontar o próprio destino?
Confrontar o próprio destino é não se ater ao script que é imposto pela vida a você. É não se acreditar algo, não acreditar que aquilo que está aí é definitivamente o que você deveria estar vivendo... porque há uma superstição que diz que se algo está acontecendo é porque deveria acontecer, que tudo está premeditado por alguma força divina. Se você quer ser um artista, esse pensamento deve ser afastado, eliminado. Ser um criador significa criar a própria vida, significa uma recusa diante do eu, uma recusa de alimentar a fome insaciável desse ego corruptor que deseja almofadas e bem-estar. Significa que você precisa se reinventar completamente e constantemente, e não é o mundo ou as circunstâncias externas que devem fazê-lo, é você. Então, ao invés de ficar se lamuriando sobre como a vida te trata, ou como as pessoas te tratam, você deveria dar a sua vida por algo, ou por alguém. Dar a sua vida pela música. Pela poesia. Derramar o próprio sangue ao invés de poupá-lo. Confrontar o perigo ao invés de evitá-lo. Para mim o ego é como o deus sacrificial das culturas agrárias. Ele está constantemente sendo esmagado, dilacerado, desmembrado, crucificado... Aqueles que resolvem se identificar apenas ao ego sofrerão com razão todas essas mortificações... Mas aqueles que conseguem fugir a isso, que conseguem se pôr no fluxo incessante da mente como uma totalidade, e ser a Musa que sacrifica e faz renascer o deus sacrificial, não só irão aprender a se rejubilar cada vez que o ego morre, como também darão à luz um ego novo, fecundo, implacável. E isso é o que acontece toda vez que se cria algo. Você está dizendo não àquela parcela de você mesmo que deseja ser poupada, que quer condescendência, que quer conforto. A arte não é a pátria para os que querem conforto. A arte é para os que querem explodir. Não tem nada a ver com ser condescendente, com aceitar, e sim com violência, com fome, com sexo, com morte. Com a loucura. Religiões tem a ver com pacificar o rebanho. Arte tem a ver com lobos predando os rebanhos.
Você faz soar como um ato criminoso...
Arte é um ato criminoso. Abandonar o script, como isso não seria criminoso... Ao mesmo tempo, esse crime protege a mente de um crime maior perpetrado desde os primórdios pelos bons e justos, pelas autoridades, pelos sacerdotes, pelos pais. Natural e antinatural se fundem na arte para impedir que a imaginação estanque, que a vida seque. Muitos crimes são cometidos por esse motivo, pela fome. Só os famintos são bons artistas, e a única condição em que se cria boa arte é de certa forma um crime, porque liberdade individual, individualismo, essas coisas são crimes (risos)... e o artista é a expressão de um individualismo exacerbado. Isso não tem nada a ver com o fato de que ele pode muito bem viver socialmente ou não. Como se diz... vida dupla. Loucura controlada. O mais individualista como o mais apto a suportar a sociedade. O mais antisocial como a única esperança da sociedade. Isso não soa como uma traição?
A arte deve ser necessáriamente confrontadora ou destruidora?
Não, a arte deve ser necessáriamente a expressão de uma vida, de uma vida plena, de um excesso de vida e de imaginação. A vida é processo. A vida é que é importante. Parece idiota dizer isso, mas sem vida estamos mortos. E a ausência de vida é a realidade de uma grande parcela da humanidade. Onde quer que não se queira lutar pela própria vida, pelas próprias idéias, pelos desejos, ali se nega a vida. Onde quer que se negue a vida a arte não pode florescer. E negar a vida pode ter muitas formas. Uma delas é dar demasiada importância a tudo que acontece consigo mesmo e com os que estão ao redor. Porque da forma como vivemos hoje, a verdadeira vida se esconde em outros recantos. E é fácil perceber como aqueles que carregam os estandartes da vida em abundância são perseguidos. Os guardiões de rebanhos estão sempre atentos com qualquer um que tenha um mínimo de audácia para desafiá-los e às suas leis.
E o sofrimento?
O sofrimento é inevitável, e ele deve ser mais um estímulo para a criação, ou então a obra irá se degenerar em niilismo e suicídio. Ao menos para mim. Eu prefiro me assassinar em um poema a incitar alguém a negar a própria vida por qualquer desculpa. O sofrimento pode não ser fácil, mas de modo algum é inútil. É fácil demais perder a cabeça, qualquer idiota pode fazer isso. Mas quando você é um artista, ele é mais uma arma, mais um estímulo. Ele pode ser grandioso. É dessa perspectiva que muitas canções folk foram escritas. O desespero, o medo, a dor, a raiva... Tudo isso precisa de uma plataforma para falar sua fala também. E a arte que traz esses elementos muitas vezes conforta almas atormentadas... Quando eu estou mal simplesmente não consigo ouvir música feliz. Não é uma decadência, é uma pequena dose de veneno que eu tomo e que me cura na maior parte das vezes. Não buscar a alegria dos covardes... Não buscar a alegria ao todo. O sofrimento tem uma alegria própria, acessível muitas vezes apenas através da arte. Sim... é necessário afirmar tudo isso, não há nenhum escape.
Gostaria de fazer algumas perguntas de cunho mais pessoal agora. Qual é a área de sua vida que você gostaria de explorar na arte e ainda não o fez?
Existe todo um outro lado de mim esperando a hora certa para sair. Acho que tem a ver com Arte Industrial... Isso durante muito tempo causou um certo mal estar em mim, porque aparentemente era o oposto daquilo que eu estava fazendo... O oposto da inspiração agricultural e selvagem, da inspiração caipira por assim dizer. Veja, eu cresci com isso dentro de mim. Meu pai foi ferreiro a maior parte da minha vida. Ele tinha uma fábrica de torres, e quando eu era criança ficava fascinado quando ía passar o dia na fábrica. Depois eu trabalhei lá durante anos, e os sons das máquinas se tornaram uma obcessão para mim. Aquilo era música industrial pura, o som de uma fábrica em funcionamento. Eu costumava entrar em transe ouvindo as máquinas. Sentia muitas vibrações interessantes ali, como por exemplo, o som do torno mais o som das serras me lembravam a tampoura indiana, aquele instrumento que parece um sitar e que dá aquela nota contínua que representa a eternidade... e assim por diante. Eu sempre sonhei em fazer um album com os sons da fábrica, e isso me persegue até hoje. É algo que eu certamente irei explorar um dia desses.
Como você reage a rotulações? Você teme ser rotulado?
Eu não tenho a mesma opinião que outras pessoas sobre os rótulos. Na verdade eu acho que são bem importantes. Os rótulos acabam se tornando muito importantes quando você está estudando algo, por exemplo. Eles funcionam como títulos em um índice. Se não há um rótulo, é bem possível que com o passar do tempo a coisa se perca, seja esquecida. Os artistas são grandes rotuladores, e quem disser que não está mentindo. É por isso que as coisas têm títulos, e eu sou apaixonado por títulos. Toda banda tem um nome, o que por si só é um rótulo. Os rótulos ajudam a caçar conteúdos, por assim dizer. Eles ajudam a identificar seus interesses.
Qual é seu sonho de vida?
Neste exato momento meu sonho é que a vida não exploda em cima de mim. Que o perigo potencial que as pessoas representam não se torne em desastre de fato. Você sabe, não há nada mais perigoso do que pessoas convivendo juntas, pessoas com suas obsessões, seus desejos, seus segredos... E tudo que eu sonho é que isso não exploda antes que eu possa fazer minha própria passagem. Depois eu me dou o direito de sonhar.
Como é seu relacionamento com companheiros de trabalho?
Na verdade, é melhor do que poderia ser. Devido à intensidade do meu individualismo poderia ser absolutamente impossível trabalhar comigo. No fundo eu não gosto de trabalhar com outras pessoas. Não gosto de ter que dividir minha visão, de ajustá-la aos outros. Mas ao mesmo tempo, é estimulante porque isso te desafia a não se desviar do próprio rumo mesmo que mude de direção.
Eu sou extremamente duro com o que faço. Detesto jogos de ego, detesto competir. Mas detestaria mais que a coisa não fôsse feita. E, no fundo, os outros acabam sendo uma oportunidade de deixar de lado a dor de ser eu mesmo.
Sim, pelo tipo de artista que sou poderia ser um desastre completo trabalhar em grupo, mas miraculosamente não é. Não me entenda mal... eu amo meus amigos. Mas como artista, dentro da arte, eu não tenho amigos, não me importo com amigos. Como artista eu só quero transcender a condição fútil em que fomos criados. Não há lugar para amabilidades dentro da arte, e é aí que é necessário discernimento, pois quão mais duro eu sou com alguém dentro de um grupo, significa na verdade que eu me importo mais com o desenvolvimento e o aprofundamento dessa pessoa. Eu mesmo sou quem mais apanha de mim ao longo desse processo, porque eu sou a pessoa de quem exijo mais.
E como é trabalhar com a própria esposa?
Isso é o mais importante para mim, a coisa mais maravilhosa de todas. Ela é muito parecida comigo, uma pessoa dura, inflexível no tocante à arte e à perfeição da obra. E ela tem anos a mais de arte, de conhecimento da arte e da história da arte e mesmo que ela possa dizer que isso não faz muita diferença, eu admiro muito isso. É muito bom viver assim, porque um estimula o outro a se aperfeiçoar mais e mais, e também a partilha das descobertas é muito estimulante. Ela é extremamente dura comigo. Às vezes é como se eu estivesse me olhando no espelho. É nela que eu vejo todas as outras possibilidades, as coisas que ainda não fiz e não consigo imaginar, as coisas do futuro. Meus sonhos como artista brotam do corpo dela agora. Ou melhor, do meu corpo que sorveu uma parte dela e se tornou em uma terceira coisa. A Arte é sempre um triângulo. É sempre uma espécie de infidelidade.