terça-feira, 16 de outubro de 2007

Registro

Amanhece um dia sombrio. Não consegui dormir mais que uma hora. Estou pleno de energia, no entanto, pleno de entusiasmo. A divindade que me preenche – poderia dizer também o dia que me preenche – é silenciosa e doce. Percebo no ato a solenidade no ar, o vento gelado. Nosso primeiro concerto no SESC Vila Mariana. A Musa parece estar satisfeita, pois há frio e houve chuva durante a noite. As fadas unseelie vieram nos propiciar. A Lúcia só está preocupada com os instrumentos.

No camarim do SESC. Me isolo do habitual burburinho da banda. Sento-me diante das grandes janelas de vidro – que é sagrado para mim – e contemplo o cinza das núvens. No começo do meu caminho eram esses dias que me levavam à poesia. Pratico tin whistle. O silêncio invade a sala por poucos instantes. Me impressiona o fato de muitos músicos não saberem apreciar o silêncio, principalmente na iminência de um concerto. Eu desejo ardentemente o silêncio. Há algo erótico no silêncio para mim, algo como presenciar o ato de amor dos Seres Trovão. Mas não importa. Nada pode me tirar do silêncio quando estou nele. Um que se conecte já é suficiente para a Musa, que aprecia a unidade. O camarim fica no sexto ou sétimo andar. A música retira todas as falas, é um banho mercurial. Tomo também duas cervejas para azeitar a garganta.

Minha relação com a Lúcia – minha mulher e percussionista da banda – nesse momento é distante, o que é apropriado. Ela é a única cuja seriedade é suficientemente grande para que não precise estar em silêncio. Quanto a mim, quero apenas interiorizar este momento.

Quando a hora chega, descemos para a Praça de Eventos. Carla, a produtora do SESC havia dito que um minuto antes o lugar estava vazio, mas ao chegarmos encontramos um público respeitável. Ótimo. Aliás, ela também acha, até se impressiona. Gosto de Carla, ela é uma pessoa doce. É muito auspicioso ser conduzido até um palco por uma pessoa doce. Vejo no público várias pessoas conhecidas. Não consigo ser profissional o suficiente para não cumprimentar várias delas.

O concerto. Estou duro como uma pedra no palco. Demora para o duende me tomar, talvez por causa das pessoas conhecidas no público, talvez pelo tamanho do espaço que intimida. Mas apesar disso, o raciocínio está ágil o suficiente para impressionar pela impecabilidade e pela precisão. Tem-se que conquistar o público de alguma maneira, e a melhor é como fazer amor, mas não hoje. Hoje é preciso apelar para técnicas, ao menos no começo. Focalizar-me em pessoas conhecidas e queridas, pessoas que têm uma grande aceitação do que estamos fazendo, como a Malu, o Lucas e a Mayla, isso ajuda bastante. O alívio da tensão é imediato. Olhar para a Lúcia também, sua concentração é contagiante. Mas olhar para os amigos presentes que não vejo há muito, ou para meus pais, atrapalha um pouco. Fechar os olhos ajuda, mas não gosto de tocar com os olhos fechados. Se não fôsse tin whistle não estaria preocupado com nada disso. Mas a tin whistle é um instrumento difícil para mim. Não tenho nenhuma garantia com ela, por mais que estude, e que tenha acertado tudo perfeitamente no ensaio anterior, ela me é traiçoeira. Felizmente tudo dá certo, e o duende vem justamente numa música de tin whistle. Quase no final do concerto, mas tudo bem. É suficiente que venha. Quando o duende vem, o ato de amor se completa.

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