terça-feira, 23 de outubro de 2007

A Dança do Sol (Registro)

Sábado à noite tocamos com o Dundalk no St. John’s. Quase derrubamos o pequeno Pub, que cada vez mais fica pequeno demais para nós. Vou tentar reconstituir neste registro o que foi esse dia, com o que me resta de energia...

Logo que o dia começou, fiz o meu ritual de sempre. Fui regar e rezar minhas plantas, e tirar uma carta de um baralho chamado Cartas do Caminho Sagrado, que contém os aspectos ritualísticos da tradição dos índios norte-americanos. A carta que eu tirei fala sobre sacrifício, um tema que cada dia mais toma novos e surpreendentes significados para mim. Pus-me a pensar... Sacrifício, o ato de tornar sagrado. Não é o que é ruim e pestilento em mim que é sacrificado, pois disso resultaria em dar um valor demasiado à imundície dessas condições. Ao contrário, eu é que sou sacrificado, tornado sagrado, pelo ato de deixar para trás, pelo ato de matar, aquilo tudo que não condiz com a divindade pela qual anseio. Assim, o sacrifício não é apenas um ato de tortura e de crueldade como muitos pensam, mas sim um gesto poderoso e implacável no sentido de aproximar-nos da sacralidade da natureza que vive através de nós.

A cerimônia da Dança do Sol portanto tem o sentido de consagrar através da dor aqueles que serão capazer de defender seu povo. Através desse gesto de união mística com a energia criadora e vivificadora do Sol, os guerreiros de um clann mostram para o mundo suas surpreendentes capacidades que os tornam aptos a assumir o papel de proteger os seus do medo, das dúvidas, das ameaças, dos inimigos. A lição calou em mim de uma forma bem clara. No momento e no dia em que estávamos para fazer nossa primeira apresentação com nossos novos “protegidos”, eu estava sendo chamado a assumir meu papel como guerreiro e como Ma-Ho, o homem que tem duas almas, uma masculina e uma feminina. O significado dessa apresentação seria sacrificial, uma espécie de consagração. De fato, apresentar-se em um Pub é sempre uma batalha, algo para guerreiros apenas. São tantos os problemas técnicos, tantas as formas do caos interferir no trabalho, que qualquer pessoa mole pode ser devastada por isso. Eu mesmo já fui. Mas desta vez eu tinha uma outra responsabilidade em mãos, a de além de fazer meu próprio rito, auxiliar nos ritos de iniciação de pessoas que eu amo, pessoas que são meu povo, meu clann. Ser uma Árvore do Sol, uma força da vida com a qual o povo pode contar.

E assim foi. Logo antes da apresentação, durante o show da Dundalk, podia sentir o que estava por vir. Antes eu tinha auxiliado nossos amigos na passagem de som, me certificado de que tudo poderia estar o mais perfeito possível, dentro das condições que o espaço oferece, é claro. E por ter uma outra banda acompanhando, pudemos relaxar um pouco mais. Enquanto assistia ao show da Dundalk, conversava com a Dora Smecke, dançarina irlandesa e uma das pessoas que mais amo neste mundo. As irmãs da Lúcia estavam logo ao lado, bem como Edson Mazieiro que foi fundamental na história do grupo e Aline Santos, que tinha vindo de Londrina ansiosíssima para nos ver tocar. Rodeado de pessoas amadas e mais ainda que estavam por vir, minhas melhores amigas do coração, eu bebia Guiness em uma pint majestosa e me preparava espiritualmente para fazer minha parte. Todos estávamos no melhor dos espíritos.

Abrimos o show falando a invocação galega Cabeço de Fráguas. Para quem estava ali poderiam ser um monte de palavras incompreensíveis, mas mesmo assim pude capturar olhares de admiração e aprovação.

Feita a invocação às Musas de Lusitania, saudei a todos que estavam ali e anunciei a dança bretã, a Hanter Dro, que é coisa seríssima. E logo nas primeiras batidas do tambor me arrepiei. O duende estava ali e estava terrível. O Ivan quebrou sua baqueta mais especial, a que seu pai havia feito para ele, a primeira. Estávamos tomados e prosseguiríamos assim até o final. A performance foi arrasadora, o público pulava até quase bater a cabeça no teto do Pub. A sabedoria popular irlandesa diz que se os músicos não conseguem tirar as pessoas das cadeiras então eles falharam. Não foi o caso nunca conosco, mas desta vez, se tivesse sido uma batalha teria sido um massacre. Não foi como fazer amor com o público, estava mais para sexo animal. Terminamos a primeira entrada, olhamos um para a cara do outro e dissemos:

“Caralho!”

Depois veio o set híbrido, uma façanha de colocar primeiro os oito músicos das duas bandas depois dez, em um palco que parece uma lata de sardinhas. No entanto conseguimos, e detonamos quatro músicas, duas da escolha da Leannan Shee e duas da Dundalk. Nós até tocamos “Toss the Feathers” que é uma das músicas instrumentais que mais gosto e cujo título sugere rituais de feitiçaria e oráculo. Assim, como auspício de consagração, nenhum dia poderia ter sido melhor até hoje na história deste orgulhoso grupo.

No segundo set, haviam menos pessoas no público, e estávamos com o tempo esmagado, poderíamos tocar no máximo umas cinco músicas. Escolhemos as mais incitantes. Pensei que seria mais fraco, mas na verdade o público menor criou mais espaço para as pessoas dançarem. Elas dançaram. Alucinadamente.

Um cara até mesmo gritou do alto da escada que eu era Hank Williams III. Eu ri e ele riu, e me senti grandemente honrado.

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