O filósofo e historiador Oswald Spengler descreve com belíssima nitidez o sentido de nossa civilização, e retrata a metrópole como um formigueiro demoníaco onde tudo remete ao passado, onde a pedra repleta de alma das catedrais góticas se expandiu ad infinitum, moldando a paisagem com o sublime simbolismo da morte. As cidades onde vivemos são gigantescos museus funerários, toda sua beleza opõe-se à vida prendendo-a, sufocando-a, limitando sua expressão para o caminho do puro espírito. As cidades são vitórias da matemática e da geometria sobre a vida, e suas avenidas infinitas cercadas de arranha-céus são os caminhos sagrados dos faraós egípcios. O homem que vive ali, se quiser se manter imune a essa mortífera beleza, deve tornar-se no meio da multidão o mais solitário dos homens.
O que ainda existe de cósmico no homem das cidades pulsa e se contorce nesses matemáticos desertos de pedra, aço e vidro. É a lembrança da natureza, uma vez que o homem não deixou de ser natural. São seus instintos rítmicos, cíclicos. Em seu corpo, esses instintos conflitam incessantemente com seus scripts urbanos. O camponês ainda está muito perto, na geração dos avôs. E é o passado, não o futuro, que mais nos encanta. Apesar de seu pretenso futurismo, a cidade clama por passado e devora com luxúria qualquer refeição de antiguidade que se lhe proponha. Não é um desejo pelo retrocesso à antiguidade em si, uma vez que exposto aos ritmos cósmicos do campo, os seres da cidade enlouquecem. É apenas algo que lembre a vida, não necessariamente a vida em si. Mas a cidade, a metrópole, essa destruidora massa informe, se derrete diante de uma dose mínima de beleza e de vida.
Eu sei muito bem do que estou falando. Venho tocando a música que em nossos dias é denominada de céltica há dez anos para os públicos da cidade. A música dos camponeses da europa, de séculos passados, música de nossos ancestrais. Posso dizer que depois de centenas de vezes em que apresentei esses repertórios, não me lembro de uma unica vez em que o público não tenha se sentido hipnotizado, transportado, independente da qualidade da performance. Apesar de arcaica, essa música soa mais contemporânea do que nunca em nossos círculos urbanos, uma vez que nossos contemporâneos estão obcecados por se libertarem e essa música oferece uma paisagem que propicia a libertação dos sentidos. Além disso, ela traz impregnada em si uma humanidade mais forte, mais saudavel, talvez não mais livre do que nós, mas certamente mais nômade.
Esse rebento anacrônico da metrópole, o ser tradicional contemporâneo urbano, é uma das poucas loucuras saudáveis que podemos encontrar no universo sonoro de nossos dias. Ele é um fruto da cidade grande, sem dúvida. E um fruto de sua época, a época dos “fins dos dias”, o outono de sua civilização. Ele anuncia novamente o camponês, o homem eterno, independente de qualquer cultura, cujos ritmos e deuses são os mesmos desde sempre. Em seu nomadismo cerebral, o bardo contemporâneo saúda o camponês, traz seus ritmos para sua vida. Submerge neles para vivificar-se.
O ritmo cósmico é o ritmo das plantas, o ritmo dos ciclos da natureza. Esse ritmo é que anima a música celta, de dentro, seja ela camponesa ou urbana, tradicional ou contemporânea.
E as pessoas dançam ao ritmo!
E é isso que nosso grupo deseja trazer. A música celta é como uma vasta floresta. É possível respirar campos já extintos através dela. Seus repertórios infinitos são como a multidão de seres que povoam as matas. Cada canção e cada dança é como um majestoso ser individual, tornando-se eterno através da transformação, enquanto mantém-se basicamente o mesmo. E como ser mágico, ser dotado de muita alma e antiguidade, cada canção transforma o espaço invisível, o espaço entre as pessoas, uma vez que o espaço urbano impõe-se e não pode ser transformado. Mas o ser e sua relação com o tempo, isso pode ser transformado, isso é uma questão de ritmo e de tom. Quão infinito pode ser o momento inspirado por uma canção! Entra-se na própria vida das pessoas, em seus organismos, injetando a seiva da vida e de um violão que chora...
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