quinta-feira, 1 de maio de 2008

Free Tibet, Galícia Livre, Asturies Libre, Liberté pour Bretagne, ou apenas De Volta Após um Breve Hiato...

Eu nunca fui capaz de entender por que alguém pode usar livremente os símbolos do comunismo e imaginar que está identificando-se com algo de bom. Para mim esse símbolo chega a ser mais corrupto e vil que a suástica nazista. Quando penso no que o comunismo fez com países como o Tibet, e que a quantidade de assassínios propagados pelo fanatismo a esse sistema político, em número assustadoramente maior que o das vítimas do holocausto, entendo que usar qualquer desses signos malditos é se associar a algo repugnante, mas ninguém parece ter consciência disso. Para mim a estrela comunista, a mesma que faz parte da bandeira da China ou do Partido dos Trabalhadores no Brasil, não passa de mais uma suástica de morte. Por esse símbolo milhares de vidas e de templos foram destruídos no Tibet, com a prerrogativa de que a religião é um veneno, e uma das culturas tradicionais mais belas e ancestrais que existem foi e é a cada dia levada a uma violência que destoa de todos os seus mais belos princípios, demonstrando a maldição que toma a vida cada vez que se troca algo sagrado por um punhado de ideais idiotas e totalitaristas. Neste ano em que as Olimpíadas da China levantam novamente velhas feridas e questões da humanidade, é apenas sensato dizer que comunismo e nazismo se igualam em atrocidades cometidas contra a humanidade, e que evolução e revolução raramente andam lado a lado. Da mesma forma identidades nacionais baseadas em antigos costumes tribais foram ameaçadas em todo o mundo celta, e tomar lados nesta questão é simplesmente um passo a ser dado por qualquer um que esteja ligado por laços de sangue ou afeto à ideologia que hoje se conhece por folk.

O que acontece diáriamente no Tibet é uma das maiores vergonhas de uma humanidade que já tem muito pouco de que se orgulhar. Talvez seja estúpido e ingênuo escrever um texto em um blog sobre isso, mas é a única coisa que posso fazer no momento para aliviar minha revolta. De qualquer maneira não é em vão, dizer algumas palavras ao vento, melhor que elas existam de qualquer maneira... Como membro de uma banda de música celta, acho impossível não sofrer um pouco em público por uma cultura tradicional que tanto me faz lembrar a dos Druídas, inclusive nas estarrecedoras semelhanças entre seus instrumentos musicais e costumes tribais, e na forma como ela é ameaçada por um mundo infinitamente menos sensível à sacralidade da Natureza, que em apoio a ideais brutais travestidos de uma aura de “bons costumes” e de “justiça social” é capaz de derrubar todo um mundo.

Fica aqui mais uma voz de revolta e de amor, e de clareza quanto a todas essas ilusões que nunca fui capaz de aceitar. A única revolução capaz de fazer algo pela humanidade é uma revolução de amantes, e o meu desejo nesta noite é de paz e liberdade para todos os povos tradicionais, com sua devoção pela Terra e por seus espíritos que os materialistas malditos querem que acreditemos que não existem, que são contos de fadas para crianças, coisa de selvagens ignorantes e supersticiosos. Free Tibet!

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Dark Kulture

Mircea Eliade, ao se referir aos artistas modernos, fala sobre o “desejo obscuro de transcender a limitação da condição humana.” É muito interessante notar que a grande obsessão das elites artísticas que criaram nossa época nunca se caracterizou por uma afirmação otimista das virtudes da condição humana, mas sim por um desejo de sua desconstrução, pela crise, pela irrupção de uma nova realidade que transcenda o humano, e pela agonia da humanidade. A humanidade é vista como imunda, desprovida de beleza, sustentada por ondas sucessivas de crime, mentiras e jogos de dominação. A consciência do artista contemporâneo leva-o a lamentar sua natureza humana. A nova condição nos impele a forçar os limites da existência para um ponto de crise, de psicose, cujo intuito é fazer nascer do caos uma nova realidade mais vibrante, mais desejável. Desejamos intensamente transcender o tempo histórico, lançando-nos em uma eternidade mítica impregnada de poder, poder intocado pelos desejos humanos e pelas mentiras de todos os melhoradores da humanidade, poder sutil de feições divinas, onde a melancolia expressa mais que a alegria o ideal estético, em concordância com o desapontamento que sentimos diante da obra humana.

Estamos diante de uma questão complexa e cheia de ramificações. Por um lado, tal paixão pela morte da humanidade pode ser vista como mórbida desilusão, uma atitude niilista. Por outro, aquele que se coloca contra a humanidade está assumindo seu comprometimento com a vida. Camus percebeu isso nos românticos ao dizer em O Homem Revoltado que o amor pela morte expresso na poesia romântica era antes um amor maior ainda pela vida. Nos simbolistas esse sentimento se intensifica. O movimento simbolista foi uma clara rejeição ao triunfalismo da nova sociedade industrial e um desejo de mergulhar em um passado mítico, em realidades mágicas, mesmo que estas fossem não mais que alegorias. E é em Baudelaire que vemos nascer a forma mais contundente, a nossa cultura obscura. Uma cultura que não transcende a depressão através do culto à felicidade, mas através da própria melancolia, de sua ressignificação, de sua estetização. O culto à tristeza a ultrapassa ao invés de chafurdar nela. Ele mostra que a alegria de quem só deseja a alegria é idiota diante daquela alcançada pelos que a buscam também nas instâncias mais sombrias. “Eu não trocaria as tristezas do meu coração pelas alegrias da multidão”, escreve Gibran, poeta árabe. A alegria das multidões são o culto aos vitoriosos, aos belos e dourados. O culto ao anti-herói nasce do sentimento de desinteresse pelos vitoriosos, essa ambição das massas acomodadas desejosas de conforto, hipnotizadas por modelos de sucesso que datam da vitória dos arianos e dos indo-europeus sobre os aborígenes. É claro que uma cultura obscura não deixa de ter seus modelos de sucesso, mas seus personagens desprezam o orgulho vitorioso, pois são fortes o suficiente para estarem mais interessados em algum objeto de poder do inconsciente, para irem além de si mesmos, de sua própria beleza, pois são fortes o suficiente para já terem transcendido a condição lamentável em que a humanidade chafurda. Não buscam a transcendência dos iogues e dos heróis solares pois a busca da transcendência convém aos fracos, aos fortes cabe estarem plenos daquilo que são, com todos os seus demônios e suas imperfeições, como animais e nada mais que animais. Emoções coletivas os enojam, exceto talvez aquelas causadas pela desordem, pelo caos. Sim eles gostam de dançar – mas sozinhos, com suas próprias sombras, ou com suas próprias mortes.

Vida límpida em circunstâncias difíceis. O obscuro é um intelectual que abandona as academias, um devoto que odeia igrejas. Seu próprio inconsciente é sua bíblia, seu próprio corpo, seu deus. Sua energia vital não mais está a serviço de causas. Ele não acredita na bondade humana. É capaz de ser dócil como um animal selvagem, e mortífero. No fundo, deseja mesmo a distância. Há um irremediável orgulho em quem vê mais beleza em sua tristeza do que em qualquer manifestação considerada sagrada pelas outras pessoas. O obscuro é um esteta, alguém que vive pelos olhos. Dessa maneira ele transfigura a moralidade exacerbada por todas as religiões ascéticas e transcendentalistas. Sua ascenção à imoralidade é uma verdadeira epifania religiosa, uma redenção cheia de arrebatamento. Onde o espiritualista diz “mente aprisionada na matéria”, o obscuro sabe “corpo aprisionado pela mente”. Seu grande inimigo é o inimigo de Nietzsche: qualquer um com sangue de teólogo. Mesmo que sua vida seja casta, corre dentro dela uma sensualidade venenosa e alucinante. E entre as chamas de seu sensualismo ele ri à maneira dos demônios. Sua atração pelo demônio é irresistível, é o anseio pelo paraíso pagão perdido, onde os corpos são divinizados, mas não apenas os corpos belos, perfeitos, saudáveis. Todo tipo de corpos. Em um mundo de corpos profanados ele é um fetichista, adorando mais ainda a mística que os envolve. Seu novo ritual é um substituto para o dogma e para a moral, onde o mundo deseja aprimoramento ele ri dos que procuram se aperfeiçoar. Mas com isso, ele se põe além da perfeição. Seu mundo pode não ser um mundo onde tudo é permitido, mas tudo ali é ritualizado. Patti Smith escreveu certa vez que o negro é o uniforme dos poetas. A atração pela cor negra – e fodam-se todos os que pensam ser o negro ausência de cor – revela-se como interessantíssimo signo. Pois de todas as cores o negro é a mais capaz de absorver a luz. O branco dispersa e reflete quase toda luz, o negro a recolhe para si. Para a cor negra a luz é a coisa mais valiosa, e ela não irá compartilhá-la com outros que a irão desperdiçar, ela não é altruísta. Da mesma maneira, o obscuro não é nenhum anunciador de virtudes. Escolhe compartilhar sua essência apenas com aqueles que procedem como ele. Deseja ensinar aos que sabem, não aos que são preguiçosos para aprender. Não compartilha a luz – a consome. É o amor em sua máscara selvagem, não o amor de cristãos, budistas, hinduístas, é o amor dos gatos, não o dos cães. Não é útil em nenhum sentido, não serve aos homens, não caça para eles, não deseja sua companhia. Tem alguns eleitos para com os quais é devoto, mas esses não são humanos para este amor. E à parte desses, prefere se esconder. Só faz o que quer, quando quer, porque quer. Para quem quer. É guiado pelo desejo, não pela utilidade, o que o torna adorável. O amor pelos gatos é o amor por essa imoralidade. A adoração pura da beleza, sem objetivos, sem ilusões. Gatos, assim como a beleza, são inúteis, não servem a nada, estão completamente desprovidos de qualquer servilismo.Vivem para os olhos, e a beleza que amam é aquela que pode ser tão afiada quanto suas garras, suas presas. Se há algo que desejam é a adoração. Mas se não a recebem, são perfeitamente capazes de viver sem ela e ter vidas interessantíssimas nas sombras. Criaturas do reino da noite, eles se bastam.Estão certos de sua adorabilidade e não se importam muito com aqueles que não são capazes de reconhecê-la.

Que ironia, os obscuros serem os melhores amantes da luz! Os malditos, os excomungados, expatriados, os deserdados do mundo, os perseguidos, os que estão fora da sociedade, os abandonados, os andróginos, homossexuais, drogados, hermafroditas, poetas de cemitério, esses são os verdadeiros luminosos! Os que não estão hipnotizados pela ganância, por posições sociais, diplomas, adulação! Como eles são incompreensíveis para o ser humano mediano! E no entanto, o grande medo dos negociantes de artes, dos jornalistas, dos empresários é não serem capazes de percebê-los a tempo, de não reconhecerem seu talento e deixarem passar o próximo Rimbaud... No texto já citado, Eliade diz que nunca o artista esteve tão seguro de que quão mais audacioso ele for, quão mais iconoclasta, absurdo e incompreensível for, mais será reconhecido. É claro que isso leva muitos idiotas à ilusão de que estão fazendo arte e muitos verdadeiros artistas a acharem-se perdidos. Mas quem sabe o que quer com rosas não precisa se preocupar com espinhos!

sábado, 5 de janeiro de 2008

Vaidade

A vaidade do ego é fútil. Mas que dizer da verdadeira vaidade, leve e leviano cultivo de uma imagem, de uma natureza morta para ocultar o que é vivo, torná-lo em segredo, ou melhor, em mistério? Poder observar-se com o desprendimento de quem aprecia a beleza de uma rosa, seus perfumes, seus mais íntimos pensamentos. Eu vivo no mito da vaidade, da vaidade etrusca, onde o mundo é um bordel. Faço dela o todo de minha prática religiosa. O cuidado com meu corpo me ensina todos os mistérios da vida. Quando começo a me descuidar demais – a loucura furiosa da ansiedade como um vício – tento imaginar-me como uma planta muito pequena, que depende de mim. Essa metáfora me lembra da delicadeza necessária do proceder.

Amar a beleza na vida é acercar-se dela e nunca mais desejar deixá-la. Por as mãos na beleza é movê-la, criá-la e ser criado por ela. Como alguém poderia sentir culpa por sentir vaidade? Até mesmo a criatura mais feia é capaz de encontrar a beleza dentro de si e amá-la mais que tudo. E eu certamente não sou a criatura mais feia.

A vaidade do ego é um erro, um desvio. Desvia-se da contemplação cósmica da natureza e da unidade orgânica para uma história de feitos pessoais, uma história moral. Do amor da deusa para o dos heróis. Não vou dizer que eu cuspa no amor dos heróis. Só estou dizendo que ele é vão, apesar de mover mundos. Nunca deixo que ele se torne mais forte que o simples amor por mim mesmo, aqui e agora, como corpo e canção de corpo. Tenho meus mitos heróicos como qualquer um tem seu ego, seu nome. E o nome está na lista, e em risco, em um mundo de espadas. É a isso que leva a vaidade do ego, a um trovejar heróico de pub, a um mundo de deuses velhos, eternamente se auto-afirmando, patéticos, senis. Nada mais patético que um deus que deseja a adoração de homens!

Mas mesmo que eu adore a mim mesmo e a meu reflexo no espelho, adoro com igual fervor meu reflexo em outras faces humanas, e o fato de outros poderem adorar-se em mim. Esse é o bom caminho da deusa. Não posso ser grotesco ou grosseiro, mas posso ter uns belos espinhos. Seria estúpido amar o próximo só por amar, e nesses assuntos tenho uma veia negra e visceral. O que acho feio me repele, e cada vez mais desejo eliminar o contato com sua desagradabilidade existencial. Eliminar o feio como limpo o banheiro dos meus gatos, sem ódio e sem apego, sem nojo. Simplesmente uma tarefa a mais. Algumas pessoas valem menos que a merda dos meus gatos, que afinal é sagrada para minha Santa Morte.

Acho que consegui expressar um pouco o que quero dizer com vaidade. Para além de todas as fés políticas, a vaidade é o unico caminho. É um caminho tortuoso, sem dúvida, mas ele mostra as coisas que realmente são vivas, que realmente são importantes na vida: amor e cuidado, alegria, um cálido sentimento de sorriso que parte do coração e provoca as lágrimas. Narciso nunca viu apenas o próprio rosto em seu reflexo. Narciso viu toda a Natureza, e por fim se fundiu com ela.

Um mito da beleza e dos que se dão em sacrifício por ela.

Que seja nosso o mito de Narciso.

domingo, 30 de dezembro de 2007

Auto – Indulgência (Uma mensagem de Solstício de Verão)

Muitas religiões condenam o excesso, o exagero, o desperdício. Especialmente quando o exagero se trata de qualquer prazer. Auto-indulgência significa não apenas realizar os próprios desejos, mas fazê-lo como se isso fôsse a única coisa, tanto e tantas vezes e de tantas formas diferentes que o prazer chega a se tornar em dor, lacera a carne e traz o sangue à tona, e adentra o corpo pelo sangue, impregnando-o com sua essência. É uma das virtudes pagãs que desejo louvar agora, sendo que estarei escrevendo sobre outros conceitos que me encantam mais adiante. Como provavelmente esta é a última postagem do ano de 2007, desejo fazer dela também uma mensagem de ano-novo para todos aqueles que lêem estas páginas malditas.

Então, como eu ía dizendo... Há um complô antigo para que as pessoas não se dêem o luxo da luxúria. Toda sorte de morais ocidentais nasceram de um desejo de anular a fome e a sede que temos pelas coisas que amamos e que nos dão prazer. Ser faminto e sedento como um cão é sinal de inferioridade para muitos, mas não para mim. Pobres daqueles que querem fazer altares de sua miserabilidade existencial, que olham de cima para nós que somos seres que rastejam em busca de qualquer migalha de prazer, como aristocráticas estátuas egípcias. Ninguém deve se envergonhar por não ser mais que um cão. Hoje escrevo estas palavras após a festa ritualística que reuniu em casa todos os belos pagãos que consegui convocar, e que me fez mais uma vez saber que a mais excelente arte é feita pelos famintos, que apenas os famintos realizam bom gosto. Nego a virtude, nego a evolução, quero ser apenas a serpente que sou, cheio de desejos, cheio de manias, cheio e não vazio. Adeus à metafísica: quero me tornar cada vez mais físico! Nada de verdades invisíveis e impalpáveis que se busca no além. Quero apenas mergulhar com todas as minhas forças em tudo que seja palpável como eu.

A auto-indulgência é o que eu desejo para todos os meus verdadeiros amigos (amigos não, amantes) neste próximo ano. Este mundo é o mundo perfeito para quem não é idiota e deseja aproveitar a vida. Tantas belezas, tantas delícias, todas postas à mesa para quem sabe cultivá-las, colhê-las e comê-las. Às vezes eu penso que o mundo foi criado só para mim... Tão perfeitas são as suas obras, que se encaixam tão perfeitamente a mim, a meu corpo, a minha mente. E eu, que sei ser auto indulgente, como cresce em mim a capacidade de aproveitá-las, em suma, como é grande em mim a força de amar. Espero que possamos todos ser consumidos por estas forças, enquanto escolhemos uma parcela generosa da vida para devorar com avidez. Se timidez, sem frescuras, sem regras de etiqueta. Amor e fome rimam desde eternidades...

domingo, 9 de dezembro de 2007

Urban Trad Manifest

O filósofo e historiador Oswald Spengler descreve com belíssima nitidez o sentido de nossa civilização, e retrata a metrópole como um formigueiro demoníaco onde tudo remete ao passado, onde a pedra repleta de alma das catedrais góticas se expandiu ad infinitum, moldando a paisagem com o sublime simbolismo da morte. As cidades onde vivemos são gigantescos museus funerários, toda sua beleza opõe-se à vida prendendo-a, sufocando-a, limitando sua expressão para o caminho do puro espírito. As cidades são vitórias da matemática e da geometria sobre a vida, e suas avenidas infinitas cercadas de arranha-céus são os caminhos sagrados dos faraós egípcios. O homem que vive ali, se quiser se manter imune a essa mortífera beleza, deve tornar-se no meio da multidão o mais solitário dos homens.

O que ainda existe de cósmico no homem das cidades pulsa e se contorce nesses matemáticos desertos de pedra, aço e vidro. É a lembrança da natureza, uma vez que o homem não deixou de ser natural. São seus instintos rítmicos, cíclicos. Em seu corpo, esses instintos conflitam incessantemente com seus scripts urbanos. O camponês ainda está muito perto, na geração dos avôs. E é o passado, não o futuro, que mais nos encanta. Apesar de seu pretenso futurismo, a cidade clama por passado e devora com luxúria qualquer refeição de antiguidade que se lhe proponha. Não é um desejo pelo retrocesso à antiguidade em si, uma vez que exposto aos ritmos cósmicos do campo, os seres da cidade enlouquecem. É apenas algo que lembre a vida, não necessariamente a vida em si. Mas a cidade, a metrópole, essa destruidora massa informe, se derrete diante de uma dose mínima de beleza e de vida.

Eu sei muito bem do que estou falando. Venho tocando a música que em nossos dias é denominada de céltica há dez anos para os públicos da cidade. A música dos camponeses da europa, de séculos passados, música de nossos ancestrais. Posso dizer que depois de centenas de vezes em que apresentei esses repertórios, não me lembro de uma unica vez em que o público não tenha se sentido hipnotizado, transportado, independente da qualidade da performance. Apesar de arcaica, essa música soa mais contemporânea do que nunca em nossos círculos urbanos, uma vez que nossos contemporâneos estão obcecados por se libertarem e essa música oferece uma paisagem que propicia a libertação dos sentidos. Além disso, ela traz impregnada em si uma humanidade mais forte, mais saudavel, talvez não mais livre do que nós, mas certamente mais nômade.

Esse rebento anacrônico da metrópole, o ser tradicional contemporâneo urbano, é uma das poucas loucuras saudáveis que podemos encontrar no universo sonoro de nossos dias. Ele é um fruto da cidade grande, sem dúvida. E um fruto de sua época, a época dos “fins dos dias”, o outono de sua civilização. Ele anuncia novamente o camponês, o homem eterno, independente de qualquer cultura, cujos ritmos e deuses são os mesmos desde sempre. Em seu nomadismo cerebral, o bardo contemporâneo saúda o camponês, traz seus ritmos para sua vida. Submerge neles para vivificar-se.

O ritmo cósmico é o ritmo das plantas, o ritmo dos ciclos da natureza. Esse ritmo é que anima a música celta, de dentro, seja ela camponesa ou urbana, tradicional ou contemporânea.

E as pessoas dançam ao ritmo!

E é isso que nosso grupo deseja trazer. A música celta é como uma vasta floresta. É possível respirar campos já extintos através dela. Seus repertórios infinitos são como a multidão de seres que povoam as matas. Cada canção e cada dança é como um majestoso ser individual, tornando-se eterno através da transformação, enquanto mantém-se basicamente o mesmo. E como ser mágico, ser dotado de muita alma e antiguidade, cada canção transforma o espaço invisível, o espaço entre as pessoas, uma vez que o espaço urbano impõe-se e não pode ser transformado. Mas o ser e sua relação com o tempo, isso pode ser transformado, isso é uma questão de ritmo e de tom. Quão infinito pode ser o momento inspirado por uma canção! Entra-se na própria vida das pessoas, em seus organismos, injetando a seiva da vida e de um violão que chora...

sábado, 1 de dezembro de 2007

O Nascimento dos Nossos Vícios

Texto extraído do Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant.

Rémy de Gourmont traduziu um texto surpreendente do séc. V a esse respeito – o Hamartigensia, ou gênese do pecado – de Aurelius Prudentius Clemens de Saragoça. Nossos vícios, escreve Prudentius, são nossos filhos, mas ao lhes darmos vida eles nos dão a morte, como o parto da víbora. Ela não dá à luz por vias naturais e não concebe pelo coito comum que distende o utero; mas assim que sente a excitação sexual, a obscena fêmea provoca o macho, que ela quer sugar com a boca bem aberta; o macho introduz a cabeça de língua tripla na garganta de sua companheira e, todo em fogo, dardeja-lje seus beijos, ejaculando por esse coito bucal o veneno da geração. Ferida pela violência da volúpia, a fêmea fecundada rompe o pacto de amor, dilacera com os dentes o pescoço do macho e, enquanto este morre, engole o esperma infundido em sua saliva. O sêmen assim aprisionado custará à mãe a sua vida: quando tornarem-se adultos, estreitos corpúsculos, começarão a arrastar-se em sua morna caverna, a sacodir o utero com suas vibrações... Como não há saída para o parto, o ventre da mãe é dilacerado pelo esforço dos fetos em direção à luz, e os intestinos rasgados lhes abrem a porta... Os pequenos repteis rastejam em torno do cadáver natal, lambem-no – uma geração órfã ao nascer... Como nossos partos mentais...

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Seres da Floresta Ficam Doentes? (Registro)

Certas experiências são tão extremas que fica difícil pensar sobre elas, que dizer de registrá-las em palavras? Tal foi a sensação deixada pela Irish Fest, onde tocamos com as bandas Merrow e Dundalk. Às vezes penso que é sorte mesmo sair vivo dessas empreitadas...

Toda a história começou com uma negociação ridícula com o patético organizador do festival que (graças aos deuses) nem estava lá no dia. Estava bêbado demais para ir. Estávamos a ponto de ser explorados por ele quando me uni às outras bandas para dar um basta: amor à arte é o caralho, isto aqui é nosso trabalho! Sempre aparecem pessoas querendo que as bandas paguem para tocar. Sempre dizem que será bom para divulgar o trabalho.

Às favas com essa merda! Enfim, no final conseguimos o que queríamos à força.

Eu realmente não me lembro de ter feito esse show... Ou melhor, me lembro de flashes. A energia estava incontrolável. Há um nome para isso, um nome que meus antepassados tremem ao ouvir: possessão. Sim, eu me lembro de ter estado lá, eu me lembro de ter tocado os sets... No entanto o que mais me lembro é de o público se parecer com labaredas dançando na nossa frente, serpentes de fogo. O som de seus pés batendo no chão é mais real nas minhas memórias do que o som da banda. De maneira alguma parecia que estávamos neste mundo. As canções não pareciam canções, pareciam encantamentos. Um amigo disse que tocamos como assassinos profissionais... Esse era exatamente o sentimento que preenchia aquele palco. Sexo e violência, natureza e arte! O espaço entre as canções era denso como manteiga. Em nenhum outro show eu suei tanto, nem senti fome, nem consegui dormir depois.

Esse show foi como uma boa foda!

Depois, eu passei uma semana inteira com a sensação de febre e não queria nem pensar sobre o que tinha acontecido. Houve uma tal alteração de estado de consciência ali que na sexta-feira seguinte (o show foi no sábado) é que senti o vazio de quando voltei ao normal, e mergulhei em uma catatonia depressiva que durou dois dias e me deixou jogado na cama e nas cadeiras de casa.

Estranha doença esta Musa... Mas eu não tenho outros desejos, e se for morrer disso morrerei feliz.

Enquanto isso, o que não me mata me torna mais estranho...