terça-feira, 20 de novembro de 2007

Seres da Floresta Ficam Doentes? (Registro)

Certas experiências são tão extremas que fica difícil pensar sobre elas, que dizer de registrá-las em palavras? Tal foi a sensação deixada pela Irish Fest, onde tocamos com as bandas Merrow e Dundalk. Às vezes penso que é sorte mesmo sair vivo dessas empreitadas...

Toda a história começou com uma negociação ridícula com o patético organizador do festival que (graças aos deuses) nem estava lá no dia. Estava bêbado demais para ir. Estávamos a ponto de ser explorados por ele quando me uni às outras bandas para dar um basta: amor à arte é o caralho, isto aqui é nosso trabalho! Sempre aparecem pessoas querendo que as bandas paguem para tocar. Sempre dizem que será bom para divulgar o trabalho.

Às favas com essa merda! Enfim, no final conseguimos o que queríamos à força.

Eu realmente não me lembro de ter feito esse show... Ou melhor, me lembro de flashes. A energia estava incontrolável. Há um nome para isso, um nome que meus antepassados tremem ao ouvir: possessão. Sim, eu me lembro de ter estado lá, eu me lembro de ter tocado os sets... No entanto o que mais me lembro é de o público se parecer com labaredas dançando na nossa frente, serpentes de fogo. O som de seus pés batendo no chão é mais real nas minhas memórias do que o som da banda. De maneira alguma parecia que estávamos neste mundo. As canções não pareciam canções, pareciam encantamentos. Um amigo disse que tocamos como assassinos profissionais... Esse era exatamente o sentimento que preenchia aquele palco. Sexo e violência, natureza e arte! O espaço entre as canções era denso como manteiga. Em nenhum outro show eu suei tanto, nem senti fome, nem consegui dormir depois.

Esse show foi como uma boa foda!

Depois, eu passei uma semana inteira com a sensação de febre e não queria nem pensar sobre o que tinha acontecido. Houve uma tal alteração de estado de consciência ali que na sexta-feira seguinte (o show foi no sábado) é que senti o vazio de quando voltei ao normal, e mergulhei em uma catatonia depressiva que durou dois dias e me deixou jogado na cama e nas cadeiras de casa.

Estranha doença esta Musa... Mas eu não tenho outros desejos, e se for morrer disso morrerei feliz.

Enquanto isso, o que não me mata me torna mais estranho...

Like a Black Cat

O prazer de escrever é o prazer de tocar a infinitude com mãos bem reais. Tocá-la, provocá-la, despertá-la. É o prazer daqueles que foram feitos para amar os deuses sexualmente.

Bem poucos foram tocados da forma que eu fuitocado em sonhos. Que deusas e que deuses se entregaram a mim em sonhos! Escrever, sentir a caneta deslisando pelo papel famigeradamente, me devolve o prazer impossível das carícias do infinito. É como se tudo se tornasse em uma longa e deliciosa foda – núvens rolando pelo céu umas sobre as outras, produzindo trovões e relâmpagos, entregues ao vento. Sinto-as dentro de meu rosto, dentro de meu peito, minhas mãos e meus braços passam a imitar seus movimentos. Me estico e meu corpo é desfeito, minha mente segue apenas os ritmos de fluxo e refluxo das marés.

Demoro a me entregar ao sono. Escrevo algo sensual, mas o que é sensual mesmo é escrever. As letras secom sobre o papel como beijos, como lambidas, como se os atos de amor ficassem tatuados na pele amante, receptiva, do eterno, do infinito, do vazio que implora por ser preenchido. O movimento das letras cria a forma dos meus desejos. Seu cheiro azul me prova que a divindade goza entre os riscos, que ela se enleva e se entrega aos ataques da pena.

Que importam todos os sentidos que as palavras têm? A sensualidade da caligrafia apaga todos os sentidos das palavras enquanto me deixo levar quase de olhos fechados por entre os murmúrios que rompem o silêncio da noite. As sílabas colam-se ao papel quase como se tivessem sido derramadas de minha boca. Algumas palavras borram como se fôssem beijos demasiado grandes cujo suco se derrama. Olho para elas com devassidão: minha boca está manchada de tinta azul, estive beijando o céu. O azul do céu se derramou em meu queixo e em meu pescoço, e a luz do sol faminta devora esse azul de todas as formas e com todos os sentidos.

Às vezes sopro as palavras para secá-las mais rápido e então a Natureza grita.

Este vício muitas vezes me leva à exaustão. Sou escravo de meus desejos, como o sou deste vício, desta Musa. Ela não me dá descanso, especialmente quando estou cansado. Ela, a Selvagem Rosa Azul, me arrasta e me esfrega. Ela é uma serpente sobre a pele branca da amante, que se corrompe em listras para receber minhas carícias da maneira que ela quer, da maneira que ela gosta.

Rastejo e rastejo com ela noite após noite, dia após dia. Meu sangue se tornou em tinta, e aqui, onde as aves que trazem os sonhos dormem e despertam, toda a minha perversidade é aceita. Não há desejo secreto ou proibido aqui. Há letras que lutam por seu espaço, mas elas são apenas como pernas de amantes desajeitadas em uma cama cheia de cobertores, que se batem.

Os sonhos me chamam. Eles olham por trás destas letras diretamente em meus olhos, me convidam a deitar as carícias e me perder. Algo nestas letras os atrai, pois vêm como cardumes inteiros para minha rede.

Quando eu me deito, minhas letras dançam ao redor de meu corpo. Quando acordo, os sonhos me provocam e a todo tempo, ó Amante, eu estou pronto!

Weakling (Registro)

Durante o segundo show do SESC Vila Mariana, senti algo que talvez todo artista sinta, mas que jamais confessa, e que ninguém no público é capaz de perceber. Uma espécie de fraqueza, de embaraço, que se apossou de mim no momento em que percebi que desta vez o duende não viria. Me senti nú, como se todas as minhas fraquezas, todos os meus defeitos, tudo aquilo que é ridículo em mim estivesse exposto para todos os que pudessem ou quisessem ver. Eu podia ver o meu esqueleto se apresentando. Senti vergonha e tive vontade de fugir.

No entanto, sim, foi incrível lidar com isso. Operar através da minha sombra, mantê-la até o fim do show, amá-la mesmo, ainda que através da admiração de outros. Conquistei algo definitivamente, ali. No final das canções, este ser que se repudia e se odeia recebeu honrarias iguais ao ser radiante que se ama e se sente orgulhoso de si. Ambos se fundiram naquele momento, somando duas belezas distintas.

No final, como importa pouco o que sentimos... Há além desse mesquinho sentir humano um mundo de poder que o atravessa. Poder, além de sentir. Isso é para mim caríssimo, pois eu mesmo sou nada mais que um bote (corragh) sacodido por todas as tempestades, mas o poder que o conduz faz com que ele sempre retorne inteiro para casa. A intenção desse poder constrói e destrói mundos, sim, é um verdadeiro deus que guia este bote com os olhos fixos em suas estrelas, mesmo quando elas estão escondidas pelas tempestades.

Só acreditaria em um deus que soubesse navegar...

Kandirê

Todo sentimento que se esvai deixa atrás de si um forte rastro de vazio. É difícil acostumar-se a isso. Não há palavras para expressar o que sinto toda vez que algo acaba, um show, uma festa, mesmo um ensaio... Volto à minha vida cotidiana com dificuldade e com um aperto de vazio no coração. Não é que a minha vida seja ruim. Ela é maravilhosa, mas nada nunca dura o tempo suficiente para mim, as experiências sempre me deixam insatisfeito porque terminam muito antes do que eu gostaria. Às vezes penso: as coisas deveriam ser como as antigas orgias e festivais – durar dias, meses até. Tudo em nosso mundo é rápido demais, e mal temos tempo de sentir o que se passou. Preenchemos com significados o enorme espaço vazio entre as coisas, entre os momentos em que vivemos como deuses. Sofremos um excesso de interiorização, mas também não sofrem os que vivem o oposto disto? Yeats dizia que a vida de um camponês é tão cheia de acontecimentos que é demais até mesmo para um grande coração suportar.

No entanto, continuo desejando viver a vida de um deus. Mesmo sendo prisioneiro na cidade, mesmo vivendo em uma época que não é exatamente de ouro, algo dentro de mim ainda insiste em se rebelar contra a realidade. Como meus ancestrais, minha alma guarani insiste em ver este mundo como um inferno que só poderei atravessar dançando e cantando. Carrego comigo este desejo represado para todos os grandes momentos da minha vida. Carrego-o para o palco, para a cama, para cada conversa e cada encontro de olhares, e espero carregá-lo um dia também para o caixão. Não quero desejar menos, ainda que o desejo me faça sofrer.

Sim, nos momentos que nos extraviamos de nossas mesquinhas vidas cotidianas, nós somos deuses. Talvez esses momentos ainda sejam poucos, e talvez um dia seu poder transborde para todos os gestos.

As the Morrigan Sings (registro)

Obras de arte perfeitas devem ser feitas como um sacrifício. Há sangue nas obras daqueles marcados pela Musa. Sangue do silêncio, que é música. Sangue do vazio, que são cores, corpos, visões. Minha vida inteira se diferencia muito pouco daqueles momentos em que estou no palco tocando e cantando. Este registro será escrito na linguagem do sigilo absoluto. Para afastar as bestas...