terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Dark Kulture

Mircea Eliade, ao se referir aos artistas modernos, fala sobre o “desejo obscuro de transcender a limitação da condição humana.” É muito interessante notar que a grande obsessão das elites artísticas que criaram nossa época nunca se caracterizou por uma afirmação otimista das virtudes da condição humana, mas sim por um desejo de sua desconstrução, pela crise, pela irrupção de uma nova realidade que transcenda o humano, e pela agonia da humanidade. A humanidade é vista como imunda, desprovida de beleza, sustentada por ondas sucessivas de crime, mentiras e jogos de dominação. A consciência do artista contemporâneo leva-o a lamentar sua natureza humana. A nova condição nos impele a forçar os limites da existência para um ponto de crise, de psicose, cujo intuito é fazer nascer do caos uma nova realidade mais vibrante, mais desejável. Desejamos intensamente transcender o tempo histórico, lançando-nos em uma eternidade mítica impregnada de poder, poder intocado pelos desejos humanos e pelas mentiras de todos os melhoradores da humanidade, poder sutil de feições divinas, onde a melancolia expressa mais que a alegria o ideal estético, em concordância com o desapontamento que sentimos diante da obra humana.

Estamos diante de uma questão complexa e cheia de ramificações. Por um lado, tal paixão pela morte da humanidade pode ser vista como mórbida desilusão, uma atitude niilista. Por outro, aquele que se coloca contra a humanidade está assumindo seu comprometimento com a vida. Camus percebeu isso nos românticos ao dizer em O Homem Revoltado que o amor pela morte expresso na poesia romântica era antes um amor maior ainda pela vida. Nos simbolistas esse sentimento se intensifica. O movimento simbolista foi uma clara rejeição ao triunfalismo da nova sociedade industrial e um desejo de mergulhar em um passado mítico, em realidades mágicas, mesmo que estas fossem não mais que alegorias. E é em Baudelaire que vemos nascer a forma mais contundente, a nossa cultura obscura. Uma cultura que não transcende a depressão através do culto à felicidade, mas através da própria melancolia, de sua ressignificação, de sua estetização. O culto à tristeza a ultrapassa ao invés de chafurdar nela. Ele mostra que a alegria de quem só deseja a alegria é idiota diante daquela alcançada pelos que a buscam também nas instâncias mais sombrias. “Eu não trocaria as tristezas do meu coração pelas alegrias da multidão”, escreve Gibran, poeta árabe. A alegria das multidões são o culto aos vitoriosos, aos belos e dourados. O culto ao anti-herói nasce do sentimento de desinteresse pelos vitoriosos, essa ambição das massas acomodadas desejosas de conforto, hipnotizadas por modelos de sucesso que datam da vitória dos arianos e dos indo-europeus sobre os aborígenes. É claro que uma cultura obscura não deixa de ter seus modelos de sucesso, mas seus personagens desprezam o orgulho vitorioso, pois são fortes o suficiente para estarem mais interessados em algum objeto de poder do inconsciente, para irem além de si mesmos, de sua própria beleza, pois são fortes o suficiente para já terem transcendido a condição lamentável em que a humanidade chafurda. Não buscam a transcendência dos iogues e dos heróis solares pois a busca da transcendência convém aos fracos, aos fortes cabe estarem plenos daquilo que são, com todos os seus demônios e suas imperfeições, como animais e nada mais que animais. Emoções coletivas os enojam, exceto talvez aquelas causadas pela desordem, pelo caos. Sim eles gostam de dançar – mas sozinhos, com suas próprias sombras, ou com suas próprias mortes.

Vida límpida em circunstâncias difíceis. O obscuro é um intelectual que abandona as academias, um devoto que odeia igrejas. Seu próprio inconsciente é sua bíblia, seu próprio corpo, seu deus. Sua energia vital não mais está a serviço de causas. Ele não acredita na bondade humana. É capaz de ser dócil como um animal selvagem, e mortífero. No fundo, deseja mesmo a distância. Há um irremediável orgulho em quem vê mais beleza em sua tristeza do que em qualquer manifestação considerada sagrada pelas outras pessoas. O obscuro é um esteta, alguém que vive pelos olhos. Dessa maneira ele transfigura a moralidade exacerbada por todas as religiões ascéticas e transcendentalistas. Sua ascenção à imoralidade é uma verdadeira epifania religiosa, uma redenção cheia de arrebatamento. Onde o espiritualista diz “mente aprisionada na matéria”, o obscuro sabe “corpo aprisionado pela mente”. Seu grande inimigo é o inimigo de Nietzsche: qualquer um com sangue de teólogo. Mesmo que sua vida seja casta, corre dentro dela uma sensualidade venenosa e alucinante. E entre as chamas de seu sensualismo ele ri à maneira dos demônios. Sua atração pelo demônio é irresistível, é o anseio pelo paraíso pagão perdido, onde os corpos são divinizados, mas não apenas os corpos belos, perfeitos, saudáveis. Todo tipo de corpos. Em um mundo de corpos profanados ele é um fetichista, adorando mais ainda a mística que os envolve. Seu novo ritual é um substituto para o dogma e para a moral, onde o mundo deseja aprimoramento ele ri dos que procuram se aperfeiçoar. Mas com isso, ele se põe além da perfeição. Seu mundo pode não ser um mundo onde tudo é permitido, mas tudo ali é ritualizado. Patti Smith escreveu certa vez que o negro é o uniforme dos poetas. A atração pela cor negra – e fodam-se todos os que pensam ser o negro ausência de cor – revela-se como interessantíssimo signo. Pois de todas as cores o negro é a mais capaz de absorver a luz. O branco dispersa e reflete quase toda luz, o negro a recolhe para si. Para a cor negra a luz é a coisa mais valiosa, e ela não irá compartilhá-la com outros que a irão desperdiçar, ela não é altruísta. Da mesma maneira, o obscuro não é nenhum anunciador de virtudes. Escolhe compartilhar sua essência apenas com aqueles que procedem como ele. Deseja ensinar aos que sabem, não aos que são preguiçosos para aprender. Não compartilha a luz – a consome. É o amor em sua máscara selvagem, não o amor de cristãos, budistas, hinduístas, é o amor dos gatos, não o dos cães. Não é útil em nenhum sentido, não serve aos homens, não caça para eles, não deseja sua companhia. Tem alguns eleitos para com os quais é devoto, mas esses não são humanos para este amor. E à parte desses, prefere se esconder. Só faz o que quer, quando quer, porque quer. Para quem quer. É guiado pelo desejo, não pela utilidade, o que o torna adorável. O amor pelos gatos é o amor por essa imoralidade. A adoração pura da beleza, sem objetivos, sem ilusões. Gatos, assim como a beleza, são inúteis, não servem a nada, estão completamente desprovidos de qualquer servilismo.Vivem para os olhos, e a beleza que amam é aquela que pode ser tão afiada quanto suas garras, suas presas. Se há algo que desejam é a adoração. Mas se não a recebem, são perfeitamente capazes de viver sem ela e ter vidas interessantíssimas nas sombras. Criaturas do reino da noite, eles se bastam.Estão certos de sua adorabilidade e não se importam muito com aqueles que não são capazes de reconhecê-la.

Que ironia, os obscuros serem os melhores amantes da luz! Os malditos, os excomungados, expatriados, os deserdados do mundo, os perseguidos, os que estão fora da sociedade, os abandonados, os andróginos, homossexuais, drogados, hermafroditas, poetas de cemitério, esses são os verdadeiros luminosos! Os que não estão hipnotizados pela ganância, por posições sociais, diplomas, adulação! Como eles são incompreensíveis para o ser humano mediano! E no entanto, o grande medo dos negociantes de artes, dos jornalistas, dos empresários é não serem capazes de percebê-los a tempo, de não reconhecerem seu talento e deixarem passar o próximo Rimbaud... No texto já citado, Eliade diz que nunca o artista esteve tão seguro de que quão mais audacioso ele for, quão mais iconoclasta, absurdo e incompreensível for, mais será reconhecido. É claro que isso leva muitos idiotas à ilusão de que estão fazendo arte e muitos verdadeiros artistas a acharem-se perdidos. Mas quem sabe o que quer com rosas não precisa se preocupar com espinhos!

sábado, 5 de janeiro de 2008

Vaidade

A vaidade do ego é fútil. Mas que dizer da verdadeira vaidade, leve e leviano cultivo de uma imagem, de uma natureza morta para ocultar o que é vivo, torná-lo em segredo, ou melhor, em mistério? Poder observar-se com o desprendimento de quem aprecia a beleza de uma rosa, seus perfumes, seus mais íntimos pensamentos. Eu vivo no mito da vaidade, da vaidade etrusca, onde o mundo é um bordel. Faço dela o todo de minha prática religiosa. O cuidado com meu corpo me ensina todos os mistérios da vida. Quando começo a me descuidar demais – a loucura furiosa da ansiedade como um vício – tento imaginar-me como uma planta muito pequena, que depende de mim. Essa metáfora me lembra da delicadeza necessária do proceder.

Amar a beleza na vida é acercar-se dela e nunca mais desejar deixá-la. Por as mãos na beleza é movê-la, criá-la e ser criado por ela. Como alguém poderia sentir culpa por sentir vaidade? Até mesmo a criatura mais feia é capaz de encontrar a beleza dentro de si e amá-la mais que tudo. E eu certamente não sou a criatura mais feia.

A vaidade do ego é um erro, um desvio. Desvia-se da contemplação cósmica da natureza e da unidade orgânica para uma história de feitos pessoais, uma história moral. Do amor da deusa para o dos heróis. Não vou dizer que eu cuspa no amor dos heróis. Só estou dizendo que ele é vão, apesar de mover mundos. Nunca deixo que ele se torne mais forte que o simples amor por mim mesmo, aqui e agora, como corpo e canção de corpo. Tenho meus mitos heróicos como qualquer um tem seu ego, seu nome. E o nome está na lista, e em risco, em um mundo de espadas. É a isso que leva a vaidade do ego, a um trovejar heróico de pub, a um mundo de deuses velhos, eternamente se auto-afirmando, patéticos, senis. Nada mais patético que um deus que deseja a adoração de homens!

Mas mesmo que eu adore a mim mesmo e a meu reflexo no espelho, adoro com igual fervor meu reflexo em outras faces humanas, e o fato de outros poderem adorar-se em mim. Esse é o bom caminho da deusa. Não posso ser grotesco ou grosseiro, mas posso ter uns belos espinhos. Seria estúpido amar o próximo só por amar, e nesses assuntos tenho uma veia negra e visceral. O que acho feio me repele, e cada vez mais desejo eliminar o contato com sua desagradabilidade existencial. Eliminar o feio como limpo o banheiro dos meus gatos, sem ódio e sem apego, sem nojo. Simplesmente uma tarefa a mais. Algumas pessoas valem menos que a merda dos meus gatos, que afinal é sagrada para minha Santa Morte.

Acho que consegui expressar um pouco o que quero dizer com vaidade. Para além de todas as fés políticas, a vaidade é o unico caminho. É um caminho tortuoso, sem dúvida, mas ele mostra as coisas que realmente são vivas, que realmente são importantes na vida: amor e cuidado, alegria, um cálido sentimento de sorriso que parte do coração e provoca as lágrimas. Narciso nunca viu apenas o próprio rosto em seu reflexo. Narciso viu toda a Natureza, e por fim se fundiu com ela.

Um mito da beleza e dos que se dão em sacrifício por ela.

Que seja nosso o mito de Narciso.